Legado

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Comunidade, esse mês foi difícil escrever, primeiro pela diversidade de assuntos que poderia conter nesse texto. Minha cocandidatura política, COVID-19, política brasileira, machismo estrutural, futebol e privilegio branco que vivemos. Enfim, muitos temas, todos mergulhados em uma mulher negra indígena e periférica, que nasceu na periferia e foi criada na favela.

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Foto: DiCampanaFotoColetivo (Vale das Virtudes, Campo Limpo – Zona Sul – SP/2017)

Eu tenho muitos pontos cegos dentro de mim e em minha consciência, pois ainda não existe condições estruturais para esquecer tudo que passou pela minha história e de tantas e tantos que eu conheço, mas sabemos que todas as tragédias instituídas em nossas vidas me trouxe para luta social, cultural e política.

Eu gostaria de ter mais lembranças felizes da minha infância, mas minha família não tinha máquina fotográfica para registrar esses momentos, então eles vivem em outras pessoas, eles a possuem e nesses momentos eu não sou protagonista. Mas me lembro bem do que é morar a beira de um córrego, pois em fim, mesmo que canalizado (em partes) ele continua lá exalando seu poder. Eu não vivi muito alagamentos, pois meu pai e vizinhos cuidavam mensalmente do lixo e escavavam para que ele não alagasse nossa casa. Essa é a realidade de muitos brasileiros e foi a minha. A urbanização da favela veio quando eu não morava mais lá, meus pais ficaram felizes e eu também pela melhoria do ambiente da minha casa, minha casa propriedade da minha família na favela, pois onde vivo hoje estou de passagem, pois o aluguel depende de trabalho.

Minha família também não foi diferente da maioria das famílias nos anos 90, violenta com os filhos por medo da violência, não compreendia nossa vida artística ou nossas baladas. Apanhei bastante para entender que só o trabalho seria uma forma digna de vida, mas quem não fica violento com a falta de dinheiro e a demanda de trabalho. Passamos, todos os meus amigos por momentos de violência que se misturava com amor e carinho, muita terapia para não ligar amor a violência, muita poesia para trazer de volta algo possível para além da violência vivida e vista entre crimes, corpos, toque de recolher e toda guerra que presenciamos na adolescência.

Ninguém me contou essa história, eu vivi enquanto crescia, muitas coisas estão nesse ponto cego outras são objetivas e sei que criei várias fugas de momentos econômicos difíceis. A escola foi minha fuga, minha fortaleza, quando aprendi a ler, aprendi o teletransporte, aprendi com os livros que poderia esconder minha pobreza em belas redações, em falas e respostas difíceis para minha idade, em ser educada e ser firme. Uma menina firme, uma mulher firme me salvou de diversos abusos e problemas.

Ser uma menina firme, me fez não sofrer em não ser escolhida na “salada mista” ou miss caipirinha, mas estar feliz em ser a oradora do grêmio, em sair sozinha, andar com os garotos, em ser a metida sabe tudo, mas que me trouxe amizades que tenho até hoje.

Existem diversos caminhos para as mulheres na periferia, mas muitas vezes tudo parece um grande labirinto que nos leva ao mesmo lugar, a maternidade. Na verdade essa foi a única vez que achei que de verdade não haveria chance e que minha vida não teria outra estrada, além de aceitar o trajeto. Mas eu sempre fui firme, e mesmo que quase perdendo o tempo eu segurei a estrada e me fiz a primeira mulher formada no ensino superior na minha família, prêmio? Não, revanche!

Não consegui ir muito mais longe que isso no que se refere a instituição, mas essa passagem foi combustível suficiente para que minhas palavras fossem ações conectadas às lutas das quais eu pertencia e da análise de tempos tão distantes e tão presentes no território periférico.

Cada fala do ser periférico me transporta para um pedaço, um dia, uma hora da minha vida, absolutamente nada me traz estranheza, hoje faço o teletransporte ao contrário, mais forte consigo olhar de frente para a vida construída nas condições em que vivemos.

Somos sobreviventes, da falta, de saneamento básico, alimentação saudável, como se diz hoje, da falta de segurança e planejamento do nosso trajeto. Mas precisamos ser firmes, nossos ancestrais foram em condições muito piores. Minha mãe veio para São Paulo como escrava doméstica e hoje eu estou aqui, escrevendo, isso é legado.

Saúdo aqui todas que vieram antes de mim e me colocaram aqui hoje periferia é matéria que transborda memórias de sobrevivência.

Sinal de nascença 
Sou  negra,
sangue indígena, brasileira,
de trajetória equilibrada na tragédia, 
povo, laço, estupro, miscigenação forçada no murro.
Enfileiradas paulistanas,
desfile de trabalhadoras à deriva, 
solavancos do transporte público.
Mascaradas relembram,
o passado ancestral.
O medo nos olhos, a fúria nas mãos.
Ladeiras acima, ladeiras a baixo, seguimos, lenços nos cabelos, colares sagrados no peito.
Observando esse filme coletivo do homem branco faminto por sangue nativo,
Uma ordem que não cessa, 
Segue com nome e sobrenome
De vírus,
uma reprise funesta de antepassados, desconhecidos,
mas sentidos nas veias que nos restam.

Anabela Gonçalves

Autor

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