Efeitos da covid-19: a maioria dos analfabetos são negros

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Considerando que no Brasil “pardos” são compreendidos como negros, o número de analfabetos superaria grosseiramente os 50% entre crianças negras brasileiras.

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Entrega de kits de livros e brinquedos para crianças, realizado no dia 19 de dezembro de 2020, pelo no dia realizamos no Núcleo XI de Agosto, Uneafro Poá. Foto: Wellington Lopes

Podemos dizer, de certo modo, que a pandemia causada pela COVID-19, inaugurou uma nova era para a humanidade, mas que, principalmente, pôde revelar e acentuar em grau elevado os problemas mais graves de desigualdades nas sociedades humanas em um flerte perigoso, incidentemente, com o facismo, discursos de ódio, fundamentalismo e a negação da realidade por teorias conspiratórias.

Segundo o Our World in Data COVID-19, houve 6,39 milhões de mortes causadas pela doença no mundo. Só no Brasil, alcançamos a marca de 677 mil mortes, considerando, inclusive, que o número pode ser objetivamente maior por conta da subnotificação de casos.

Mesmo atingindo o número de 95% da população brasileira vacinada, segundo o Ministério da Saúde, pelo menos com uma dose de vacina contra COVID-19, ainda somos incapazes de mensurar o impacto destrutivo que a pandemia gerou somada aos diversos campos da vida social, econômica, política e institucional da sociedade brasileira.

O médico e professor de antropologia, da Universidade de Connecticut, Merrill Singer, trouxe à luz o conceito de sindemia, que significa a colaboração mútua entre problemas de saúde agravados por contextos problemáticos socioeconomicamente e é o termo que utilizaremos daqui em diante ao falar do período que vivemos.

Isso significa, no contexto da sociedade brasileira, o aprofundamento das desigualdades raciais, de gênero e classe. 

Contudo, na tentativa de mensurar impactos, gostaríamos de propor um exercício de reflexão em torno de um campo específico: o crescimento da desigualdade educacional na alfabetização de crianças durante a extensão desse período de sindemia.

Também revelam o crescimento absurdo do analfabetismo entre crianças pretas e pardas, respectivamente de 28,8% e 28,2% de 2019, para 47,4% e 44,5% em 2021. Considerando que no Brasil “pardos” são compreendidos como negros, o número superaria grosseiramente os 50% entre crianças negras brasileiras.

Já os dados entre crianças brancas apontam um crescimento de 20,3% em 2019 para 35,1% em 2021, o que demonstra que o número não foi pouco, mas o relatório não considera os dados unificados de pretos e pardos para dimensionar a disparidade racial ainda maior – o que nos levaria a um número maior que 12 pontos percentuais de diferença. 

A educação no período da infância e da adolescência é, sobretudo nas periferias, o meio pelo qual se desenvolve relações de pertencimento social e sociabilidade. É onde a criança tem suas primeiras experiências sociais fora do núcleo familiar.

Então todo ambiente escolar desenvolve uma rede de relações que oferta formas de letramento, ou de outra forma, apreensão do universo possível que as cercam. O letramento torna-se um exercício de compreensão da realidade.

Portanto, a alfabetização ganha novos contornos quando consideramos que ela ocupa um papel mediador entre o processo de letramento sobre o mundo social e a linguagem escrita. É uma ferramenta de busca para respostas individuais e coletivas no período escolar.

A identidade assume durante essa fase da infância e da adolescência na escola, um aspecto de formação, porque é nela que se concentra a descoberta de valores morais, éticos e culturais que elas assumirão ao se perceberem parte de um ou mais grupos (a identidade racial, de gênero, cultural e de classe) e do todo (a sociedade como um relação complexa de redes).

Podemos dizer que a literatura infantojuvenil é primordial no desenvolvimento de crianças e adolescentes no geral, mas é imprecindível para crianças negras e negros para o autoconhecimento e valorização da cultura afro-brasileira e africana.

Um dos pontos importantes para que isso aconteça, além da inserção de autores negros nos estudos ao longo da vida letiva, é a presença de personagens negros nas histórias e estórias. 

O avanço dos danos na alfabetização durante a sindemia da COVID-19, desafia educadores a enfrentar um cenário de necro-sociabilidade. Onde o combate à fome ganha o palco das principais atividades e dinâmicas escolares. 

Mas voltando ao tema do acesso a uma literatura negra, a falta de personagens e autores negros, pode trazer para jovens negros a sensação de que devem ser de outra forma. Com a ideia, inconsciente, de que para alcançar humanidade e sucesso, devemos ser representados como “produtos de padronização cultural desse sucesso”: como pessoas brancas.

É a sensação de não pertencimento e de inferioridade, decorrente da falta de acesso ao conhecimento em relação a trajetória e a história da população afro-brasileira, que pode ser gerada pelos danos à educação de crianças e jovens negros.

Afetando em longo prazo o desenvolvimento e autoconhecimento na fase de transição da infância para adolescência, e desta para a vida adulta. A busca de si mesmo torna-se a busca pela representação do outro.

Há um caráter colonizador, também, na disputa institucional em torno do futuro da educação. De um lado a busca pela privatização do ensino e desse mesmo lado uma cruzada contra o que militantes de direita chamam de “doutrinação ideológica”.

Então, ao dimensionarmos a forma que a sindemia atuou, no modelo que temos de educação brasileira, devemos olhar para a forma que é realizada o sistema de cooperação de governança das políticas educacionais nos três níveis federativos: União, Estados e Municípios.

No momento mais grave da nossa história recente, é mais do que uma necessidade, torna-se obrigação pública, pactuar um modelo colaborativo de governança do Sistema Nacional de Educação (SNE).

O problema é que cada rede acaba funcionando como um sistema independente e desvinculado dos outros. Isso acaba não dando clareza à responsabilidade de atribuições a cada nível federativo de governo.

Exatamente esse processo nos leva a compreender que a escassez de distribuição de recursos técnicos e financeiros, leva cada rede a criar estratégias e dinâmicas próprias para lidar com os problemas locais.

Inclusive, segundo o Todos pela Educação, o Brasil seria mais eficiente na criação de soluções dos problemas gerados pela sindemia na educação se pudesse contar com um SNE que melhorasse a governança e a pactuação das políticas educacionais entre os entes da federação.

Num momento de avanço das desigualdades educacionais, além da criação de leis complementares para realizar um processo de pactuação e a diversificação de fundos para educação, como o Fundeb, seria imprescindível alcançarmos alguns parâmetros de articulação mútua.

Mas é impossível pensar todo esse processo com as políticas para educação do atual governo.  

Do enfraquecimento das universidades públicas ao incentivo da privatização, não há ponte para um futuro possível com fundamentalistas religiosos e conspiracionistas pensando as esferas de atribuições federativas da educação.

Na fase em que a literatura ganha o seu papel mais importante no espectro do combate ao racismo na educação básica, podendo apresentar autores e persogens negros que protagonizem narrativas diversas, enfrentamos um gigantesco déficit educacional.

É necessário criar mecanismos de monitoramento e marcos regulatórios para políticas educacionais “pós-sindemicos”, que criem um diálogo permanente e interdependente entre Estados, Municípios e União.

Isso significaria criar prerrogativas para acompanhar políticas de mitigação das desigualdades raciais na educação básica e em todos os níveis. Prevendo a aplicação ampla das Leis 11.645/2008 e 10.639/2003, tornando presente a trajetória das populações afro-brasileira e indígenas nos currículos, a formação continuada e outros mecanismos educacionais.

Então como acessar nossas histórias através da literatura se não sabemos ler? Como estudar se precisamos de trabalho? Como concentrar-se nos estudos se sentimos fome?

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