Olhar para si, com amor, atenção, dedicação, respeitar nossos ciclos, tudo isso é constantemente negado, principalmente para quem está nas margens da sociedade.
Ultimamente venho pensando muito sobre autocuidado. Acho que a pandemia trouxe à tona diversos entraves e com a recomendação de isolamento social, essa foi uma das formas de sobrevivência nesse período. Mas porque o fato de se auto amar, cuidar e conhecer, geralmente não é algo espontâneo? Se preservar deveria ser algo imediato, afinal, meu corpo, minha mente, tudo que me compõe está comigo – sempre!
Quando recebi o convite do Desenrola para escrever para essa coluna, não pensei duas vezes: o nome seria Cura pelas bordas! Íntegro coletivos e movimentos desde pequena e retratar a potência das margens, trazer questionamentos que envolvem essa pauta, pensar e discutir sobre os territórios populares e suas formas de enfrentamento é a minha proposta aqui.
Mas percebo também, nas discussões sobre as problemáticas sociais, que a gente se coletiviza tanto, que esquecemos que esses debates são sobre PESSOAS e como todas essas dinâmicas nos afetam diretamente.
No início da pandemia, nós (que moramos da ponte pra cá) sabíamos que o maior prejuízo seria para os nossos. A solidariedade nas comunidades foi muito romantizada, para esconder a falta de políticas pensadas para as demandas das quebradas. Tudo que já era tenso, agravou: A lotação no transporte público, o colapso no sistema de saúde, a falta de acesso à informação, a evasão nas escolas, o desemprego, a fome e tantas outras questões.
E o movimento para combater tudo isso nas margens foi frenético, arrecadação para campanhas, distribuição de cestas, muito conteúdo sendo produzido de nós pros nossos, tantos outros projetos…
Tá. Mas o que eu quero dizer com tudo isso? O rombo que a desigualdade social causa, faz com que esse olhar para si mesmo seja praticamente impossível e a pandemia, também agravou isso. A gente luta diariamente pelo básico e cuidar de si parece luxo.
E as necessidades são tantas, que essa missão de mudar o mundo e tudo que a gente faz pra isso, parece ser insuficiente. Logo, cuidar de si vai sempre ficando pra depois. E as cobranças aumentam, consequentemente a ansiedade intensifica e possivelmente, a depressão também. Lidar com tantas mazelas e não se afetar, é como ser de ferro… E a gente não é! As coisas nos atravessam e nós temos direito de pausar e acolher isso.
Todo esse contexto, mais uma vez, não é por acaso. Crescer na periferia é entender desde cedo que tudo que a gente produz é pra fora. A gente acorda de madruga pra fazer o centro girar, inclusive todos os caminhos, seja de busão, trem, metrô, são nesse sentido, e tudo que é nosso é marginalizado, inferiorizado. Então a gente vai aprendendo a se odiar, desgostar de onde a gente veio, das nossas raízes. Isso sem contar outras interseccionalidades (raça, gênero, sexualidade, etc) que, à medida que se acumulam, têm esses pensamentos cada vez mais enraizados: o outro primeiro, depois eu.
E, por mais que a gente se articula, se empodera, se mobiliza pra afrontar todos esses processos que ainda persistem no cotidiano da quebrada, estamos sujeitos a reproduzir isso. Ainda mais num sistema que nos impõe essa dinâmica.
Então, a escolha consciente de se autocuidar é extremamente revolucionária!
Compreender nossos limites, dizer não, não abrir mão de momentos de lazer, de descanso, dos nossos sonhos pessoais para além dos coletivos, entender que tudo bem não dar conta de tudo, dentre tantas outras coisas que a gente atropela.
As estruturas nos adoecem e lutar a qualquer custo contra elas, também! Acredito que o cuidado consigo também é resistência. Olhar para si, com amor, atenção, dedicação, respeitar nossos ciclos, tudo isso é constantemente negado, principalmente para quem está nas margens da sociedade.
E quando falamos das complexidades das relações sociais, estas também são relações! E como em qualquer uma, a gente precisa se fortalecer individualmente, se firmar nas nossas próprias convicções, curar nossas próprias feridas e ter nossos momentos a sós. Qualquer relação em que passamos a nos anular, não é saudável. É um exercício constante reiterar: nós somos pessoas, antes de ativistas.
Enfim, esse texto não é um apelo para você parar de lutar por um mundo melhor, mas sim um convite pra que você entenda que cuidar de si faz parte desse plano. E que essa prática é contínua, num aprendizado constante, e o amor é isso: “Uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança”, mas é também “o antídoto mais poderoso contra as políticas de dominação”, como nos ensinou Bell Hooks.
Que a gente proporcione isso para nós mesmos, porque somos mais que merecedores. E que a gente crie redes de cuidado, antes de ir pro fronte, se não podemos acabar dando um tiro no pé.
Esse é um lembrete diário. Pra mim e pra você!