Opinião

A população preta e periférica vai criar a ‘lei dos pobres’ do século XXI

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Há mais de 400 anos nascia na Inglaterra uma das primeiras leis de combate a pobreza no mundo. Numa comparação com o cenário brasileiro atual, vamos refletir sobre como governos e empresas atuam historicamente contra os interesses da população pobre, que mesmo debilitada, cria estratégias para sobreviver e construir o amanhã.

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Jardim Nakamura |
Foto: @menino_do_drone

Enxergar o futuro não pode ser um elemento de desigualdade social. Todas as pessoas têm o direito de criar perspectivas e expectativas sobre o amanhã individual e coletivo da sociedade.

Eu, Ronaldo Matos, morador do Jardim Ângela, um dos principais conjuntos de periferias e favelas da zona sul de São Paulo, acredito que o acesso à informação e a cultura do aprendizado coletivo e libertário, oriundo do encontro das pessoas formam um conjunto de experiências sociais e educativas potentes o bastante para mover a sociedade rumo a um forma de organização mais democrática e menos centralizada.

Mas neste momento de pandemia, onde somente o Brasil já sepultou mais de 300 mil vidas, fica extremamente impossível propiciar um encontro coletivo, afetivo e democrático, com espaço de fala e trocas sinceras para todos nós. Esse cenário também nos individualiza, suga nossas energias e nos impede de sonhar com um futuro melhor.

Na primeira coluna Territórios do Futuro, vamos conversar sobre a possibilidade de vislumbrar um futuro onde as pessoas menos favorecidas do ponto de vista econômico e político possam se organizar para solucionar os problemas sociais que as atingem.

Por isso, eu quero lhe convidar agora a fazer duas ações importantes: o primeiro convite é para você se permitir a fazer uma viagem no tempo, no qual você vai conhecer um pouco mais sobre o século XVII na Inglaterra, período onde foi construída a primeira Lei dos Pobres, um conjunto de leis que garantiram minimamente a sobrevivência das populações que viviam em situação de alta vulnerabilidade social.

Neste tempo histórico, a primeira revolução industrial estava se desenvolvendo e gerando uma grande concentração de riquezas para a elite ou burguesia, como muitos preferem chamar, uma classe social que fomentava o surgimento do capitalismo industrial, atividade econômica baseada na evolução tecnológica, que transformava o trabalho manual com o emprego de máquinas a vapor, fato histórico que culminou no surgimento da indústria têxtil, que viria gerar muitos postos de trabalho precarizados.

Para trabalhar na industrial têxtil, as pessoas estavam deixando a sua vida no campo, ou seja, foram obrigadas a parar de trabalhar no campo, onde detinha um estilo de vida mais pacato, organizado e voltado ao bem estar da família e preservação da sua ancestralidade, para ingressar no setor de indústria, uma das principais fontes de trabalho e renda da época, graças à revolução das máquinas. Esse acontecimento transformou o estilo de vida de milhões de cidadãos ingleses.

Pense que no Brasil, algo semelhante aconteceu, quando milhões de pessoas migraram de suas terras natais no norte e nordeste brasileiro durante o século XX, onde residiam em sua maioria no campo, trabalhando com cultivo de roça, pesca, criação de gado, galinha e porcos, para trabalhar nas grandes capitais, como São Paulo.

Elas foram forçadas a fazer essa migração em busca de melhores condições socioeconômicas de vida, já que o poder público local e federal não criou na época formas de manter o seu modo de vida com a criação de políticas públicas que permitissem manter sua origem cultural e regional.

Na Inglaterra, a primeira versão da Lei dos pobres foi criada em 1601 e vigorou até 1834. A lei garantia que a Igreja, ou seja, a comunidade paroquial recebesse recursos públicos para oferecer atendimento humanitário para a população em situação de alta vulnerabilidade social.

“Baseada no princípio de que era encargo das administrações paroquiais zelarem por seus pobres desamparados, empregando os sadios e subsidiando a subsistência dos inválidos para o trabalho, a Lei dos Pobres, instituída no início do século XVII, passa a conviver com ataques permanentes contra seu funcionamento a partir do século XVIII, quando o gasto público que ela representa entra em uma espiral ascendente. A gestão dos desamparados converteu-se cedo em uma problemática central para o pensamento econômico britânico, inclusive para a jovem economia política.”

Trecho extraído do artigo “o direito à subsistência em xeque: um olhar sobre a lei dos pobres e o ato de emenda de 1834”

O contexto social que justifica a criação da Lei dos Pobres é o cenário de crescimento das desigualdades sociais, na qual, a cidade de Londres e os municípios no seu entorno, uma espécie de Região Metropolitana de São Paulo, passou a abrigar uma série de indústrias que empregavam uma população empobrecida pelos baixos salários e inexistência de direitos trabalhistas que impossibilitaram centenas de milhares de famílias de desfrutar de boas condições de vida.

O resultado desse movimento econômico foi tornar cada vez mais difícil o acesso ao saneamento básico, moradia, alimentação, serviços de saúde e é claro, segurança pública, que eram direitos sociais escassos e acessíveis somente a quem era membro da burguesia, formada por fazendeiros, industriais e políticos que tinham como forte aliado membros da Igreja Católica.

Neste cenário, a fome era um elemento social que fazia parte da paisagem urbana nas ruas da Região Metropolitana de Londres, onde moradores de rua, crianças e famílias inteiras disputavam a atenção das pessoas com melhores condições sociais e econômicas para receber alguma doação de alimentos ou de dinheiro. No Livro ‘A situação da classe trabalhadora na Inglaterra’, Frederich Engels descreve esse cenário com uma impressionante riqueza de detalhes.

No Brasil, em pleno século XXI, 400 anos a frente do cenário social, político e econômico, descrito até agora sobre a Inglaterra, o rapper Sabotage, conhecido como o maestro do Canão, favela localizada no centro sul expandido de São Paulo, que o projetou para o cenário do rap nacional, tem na música ‘País da Fome’, uma série de referências sobre a divisão de classes sociais no país. Ao recitar no refrão ‘homens animais’ e enfatizar que os ‘herdeiros são os primeiros’, Sabotage deixa um recado ainda mais enfático aos seus ouvintes: ‘o pobre é réu’.

Usar o rap como uma ferramenta educativa para reflexão e compreensão histórica das desigualdades sociais no país é um fundamento pedagógico que faz parte da minha formação como sujeito preto e periférico, por isso, eu lhe convido a ouvir ‘País da Fome’ e sentir a mensagem que Sabotage nos oferece.

Confira aqui a mensagem do rapper.

Em todos os textos da coluna eu vou buscar propor experiências culturais para você sempre ler e interagir com conteúdos que apontam para a criação de análises e cenários futuristas sobre a vida da população preta, pobre e periférica.

Voltando a Inglaterra, no período de fortalecimento do setor industrial e o enriquecimento de uma elite que contratava pessoas para trabalhar com baixos salários, outro ponto importante e histórico acontecia. Empresários iniciaram um processo de discussão sobre os males do ‘assistencialismo’ e problematizaram os impactos dos gastos públicos para manter na ativa a Lei dos Pobres.

Em 1834, a Inglaterra vivenciou mais um marco histórico de políticas públicas a favor da manutenção da miséria de seus cidadãos. A pressão dos empresários donos de indústrias junto aos parlamentares britânicos resultou no Ato de Emenda, uma espécie de revisão da Lei dos Pobres, que sob o pretexto de reduzir o orçamento público para cuidar da população em alta vulnerabilidade social, aprovou uma legislação embasada na vigilância, internação e no controle social dos pobres. Essa mudança na lei ficou conhecida como a Nova Lei dos Pobres.

Ao pressionar políticos influentes do parlamento britânico, que foi criado em 1200, para reduzir investimentos públicos direcionados a esse conjunto de leis, a burguesia consegue alcançar seu objetivo.

A partir desta movimentação dos empresários do setor industrial, começa de maneira marcante a se construir uma nova cultura de participação política, onde o poder público tende a ceder aos interesses do setor privado, ou seja, onde as empresas fazem pressão nos governantes para o país, estados e cidades, serem governados de acordo com seus interesses.

É importante ressaltar que tudo isso aconteceu no processo de consolidação da primeira Revolução Industrial, entre os séculos XVII e XIX.

Hoje é 25 de março de 2021, já se passaram mais de 190 anos desde a criação da Nova Lei dos Pobres, em 1834 na Inglaterra. Mas e no Brasil, quais mudanças propositivas na vida da população preta, pobre e periférica aconteceram? O que mudou em relação à desigualdade social que separa e distingue a forma de vida de ricos e pobres no país?

Olhando para os dias atuais no Brasil, é impossível não comparar esse período da história da Inglaterra com a questão do Auxílio Emergencial, uma política pública de extrema importância, voltada à população empobrecida pela crise econômica que se intensificou durante a pandemia de coronavírus, na qual o governo federal afirma não ter recursos públicos suficientes para subsidiar um auxílio digno que possa suprir gastos básicos da população para mantê-la viva e ativa, para lutar por seus direitos.

Na música ‘Salve-se quem puder’, o rapper Dexter em parceria com o poeta Gog, denuncia como a população preta e periférica vive por conta própria há dezenas de anos e segue sendo exterminada pela ausência de políticas públicas que a proteja e garanta o direito à vida.

Ouça e reflita sobre o som Salve se quem puder.

É com essa consciência política e histórica de que a população preta, pobre e periférica vive há mais de 500 anos no Brasil por conta própria que a Coalizão Negra Por Direitos, um grupo que reúne diversas organizações que atuam por justiça racial no Brasil, está realizando em parceria com outras organizações da sociedade civil a campanha “Tem gente com fome“, uma mobilização de doações, por meio da internet, que conta com parceria com artistas e formadores de opinião, em busca sensibilizar a sociedade para doar recursos financeiros que se tornarão doações de alimentos para mais de 220 mil famílias brasileiras.

Assista e contribua com a campanha. 

À base da organização popular, senso crítico, compreensão histórica do seu lugar no mundo e elaboração de conhecimento baseado em pensadores negros do Brasil e do mundo, a Coalização Negra Por Direitos representa uma ação prática e exemplar que demonstra como a população empobrecida pelos governos e empresas, que só defendem os seus próprios interesses desde 1601, como mostra o exemplo da criação da Leis dos Pobres na Inglaterra, podem se organizar no futuro para reivindicar seus direitos, construir suas próprias leis e cobrar posturas de líderes políticos para tomar suas decisões conectadas com as reais necessidades da população.

Por enquanto, a história do passado nos mostra que enquanto os políticos que nós elegemos e os empresários que nos oferecem empregos com baixos salários conviverem juntos, apenas os seus próprios interesses serão atendidos. E não o interesse da maioria da população. O futuro não pode repetir esses acontecimentos. O presente, o agora, o hoje permanece igual a 1834 na Inglaterra?

Para construir um futuro que ainda é incerto, temos uma dependência clara da nossa vitalidade de energia e consciência da importância da participação política para imaginar coletivamente como será o amanhã.

Precisamos estar alimentados de esperança para alicerçar o chão do futuro. A Coalizão Negra Por Direitos já deu a partida para criar essa estrada. Precisamos criar agora o combustível para transportar mais pessoas pretas, pobres e periféricas por esse caminho tenso e necessário da construção da política institucional e dos direitos que nos são negados há mais de 500 anos.

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