A cultura fora do senso comum

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Um texto que escrevi no livro “Nenhum passo atrás!” do Fórum de Cultura da Zona Leste, que retrata várias lutas por direitos nas regiões periféricas da zona leste e além dela.

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Encontro agentes culturais das periferias. Foto: Arquivo Fórum de Cultura da Zona Leste

Oprê! Salve queride, tudo bem contigo? Espero que sim. O texto que segue é uma escrita de uns anos atrás no livro “Nenhum passo atrás!” do Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL). O nome do livro é uma feminagem / homenagem a um grito de guerra e uma música composta por Daniel Marques Sundiata, grande poeta e ativista negre e LGBTQIA+.

Este livro é bem bacana, retrata várias lutas por direitos nas regiões periféricas da Zona Leste e além dela. A publicação dá uma amostra de como as periferias das diferentes regiões da cidade se organizaram para fundar o Movimento Cultural das Periferias e, além de outras tantas ações, criar de forma popular a Lei de Fomento à Cultura das Periferias (lei 16.496/16), política pública que descentraliza recursos financeiros para a cultura. A lei é vigente na cidade de São Paulo e foi construída de forma suprapartidária e escrita a muitas mãos periféricas.

O livro tem protagonismo plural e foi organizado pela articuladora cultural Elaine Mineiro, pela gestora cultural Mônica Gomes e pela poeta e artesã Queila Rodrigues. São vários textos nessa publicação, estou deixando por aqui a minha contribuição no livro, mas vale muito você conferir ele por completo porque tem várias ideias de manas, manos e de movimentos culturais deste e de outros tempos nas quebradas de Éssepê.

Cultura 

Oprê! Me deram a honra de escrever sobre a importância das discussões culturais do Fórum de Cultura da Zona Leste (FCZL). Para isso darei alguns passos atrás para rascunhar aqui um desenho do que seria cultura e que valores comumente se atribuem a ela.

Cultura: do latim “colere”. Cultura significa cultivar. Em relações humanas teria então o sentido de cuidado com o meio (social ou cultural). Cultura é a relação do humano com o meio nas mais variadas formas: na relação com a natureza (agricultura), na comunicação com os outros seres (linguagens), nos costumes de um povo ou grupo, nas cosmovisões (nos cosmo sensíveis, nas fés dos sagrados afrikanos, como diria Sidnei de Xangô) e, por último e não menos importante, na criação de interações com o meio para cuidar do futuro que é comum a todos.

Resumindo muito, cultura é um “guarda-chuva” que cobre muitas áreas do pensamento e do comportamento coletivo, inclusive o pensamento crítico e político. Para o senso comum atual, muitas vezes cultura é vista como acúmulo, ou como quando se pergunta se “fulana ou ciclano tem cultura”: “foi ao teatro?”, “leu tal e tal livro?” e por aí vai.

Dessa forma, muitas vezes o termo cultura se desprende do cotidiano e, de certa forma, no senso comum vira algo que “está fora”, que precisa ser alcançado, que uns têm e outros não. O Estado e os meios de comunicação têm papel fundamental nessa distorção do que vem a ser cultura.

Estado e Cultura

Foi o Estado que durante muitos e muitos anos apartou a população do direito de discutir e escolher quais caminhos deve trilhar em sociedade. Estamos falando dessa sociedade: a sociedade “brasileira”.

Coloco “brasileira” entre aspas porque um território que não reconhece os direitos humanos essenciais de parte da população (povos originários, negres, mulheres e LGBTQI) não merece ser chamada de nação.

Friso que para mim (e pra muites) não existe Brasil. Nunca existiu. É uma fábula. Foi o Estado Brasileiro que, para justificar seus atos e “pelo progresso da nação”, inventou que povos originários (para eles indígenas) não tinham cultura, por isso mereciam ser subjugados.

Foi o Estado brasileiro que comercializou e escravizou pessoas negras. Foi e é o Estado Brasileiro que não reconhece direitos individuais e coletivos de povos originários, negres, mulheres e população LGBTQI, fazendo que estejam aquém de suas potencialidades.

Este Estado não por acaso, na Ditadura, apartava a população de linguagens culturais, que eram vistas como emancipadoras ou questionadoras do estado geral das coisas. Assim, a população “brasileira” quase nunca se via como detentora do poder de mudança cultural, logo não pôde mudar a política, que segue com poucas mudanças estruturais.

Não era a população que decidia antes da democratização e, após ela, tivemos e temos uma democracia tímida na qual apenas de quatro em quatro anos se pode votar em alguém que quase sempre é membro da “elite” dessa sociedade (geralmente homens brancos), ou seja, esses eleitos geralmente ignoram as particularidades e necessidades de outros meios sociais em que não conviveram. 

E cultura, cultura também é convívio. Convívio e empatia.

Há bibliografia vasta que pode confirmar as afirmações aqui descritas. De Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e Joel Rufino dos Santos nos anos 70/80, passando por Sueli Carneiro e Rosane Borges nos anos 2000 até chegar a Djamilla Ribeiro, Joice Berth ou Silvio de Almeida na recente coleção Feminismos Plurais.

Apesar das provas estatísticas e das teses dos “excluídos da nação” estarem há anos registradas e editadas em diversos livros, o epistemicídio e a pouca abertura dos meios de comunicação mantém abafadas estas tantas vozes: as vozes da maioria minorizada.

A periferia e o trânsito de ideias

Por outro lado, desde sempre houve e haverá grupos organizados para alterar o estado geral das coisas, alterar o dito “status quo”, que é geralmente eurocêntrico e novamente rendido a um fanatismo e a valores e interesses estadunidenses.

Neste sentido, movimentos sociais, organizações comunitárias, alguns grupos religiosos, grupos de mulheres ou comunidades tradicionais afro-brasileiras e “indígenas” sempre se debruçaram sobre como sobreviver numa sociedade que não foi fundada para reconhecer suas presenças, direitos e suas necessidades específicas.

Acredito que na atualidade, após a explosão dos saraus, slams e depois de um maior acesso da classe trabalhadora às Universidades Públicas, as periferias têm sido um dos catalisadores e organizadores de uma frente ampla por uma sociedade mais justa, igualitária, uma sociedade que busque equidade entre todes, todas e todos membros de seu meio.

Eu acredito que é justamente nesse tipo de atuação que os encontros e eventos organizados pelo Fórum de Cultura da Zona Leste estão inseridos.

Por estarmos na era da internet, vez ou outra este tipo de iniciativa é visibilizada para outras regiões da cidade e o resultado é o trânsito de ideias de uma periferia a outra, o que faz com que uma experiência seja replicada de quando em quando em regiões diferentes da cidade.

Eu pude nos últimos 5 anos ser testemunha ocular e um colaborador ativo em coletividades que têm garantido redes de proteção de direitos e que, a duras penas e com poucos recursos, fazem com que as pessoas tenham consciência do tipo de sociedade em que vivemos.

As experiências das quais estive mais próximo foram a do FCZL e do Movimento Cultural das Periferias, este último, organização que congrega diversas coletividades das periferias.

Durante o ano de 2017, o FCZL se debruçou sobre temas e temáticas importantes, garantindo visões de articuladoras e articuladores das mais variadas atuações. Esses encontros foram fruto de outras tantas articulações, feitas por coletivos de periferia nos últimos 4 anos.

Cada um dos encontros deu conta da paridade de gênero e étnico-racial, de forma que a pluralidade (e não só a diversidade) enriquecesse os temas e as conversas, que tinham participação ativa da comunidade e facilitadores mulheres, negros, bichas, lésbicas, indígenas etc.

Os temas perpassaram questões estruturais como a economia, a população negra no mercado de trabalho, racismo nas artes e na cultura, machismo, sexismo, patriarcado, genocídios e cartografias da exclusão. Todo esse material é disponibilizado em vídeo na página do facebook, incluindo, além das falas de convidadas, as perguntas e comentários do público.

O FCZL junto de centenas de coletivos e organizações de periferia vem fazendo um trabalho que estimula o convívio comunitário e discussões amplas, que provam que cultura é política e que a população de quebrada muitas vezes tem alternativas de pensamento além do senso comum e do que é veiculado na mídia tradicional.

É importante que você, que lê esse livro periférico, visite outros bairros e amplie o leque de opções de diálogo e de organização: pelo direito à cidade e por uma cidadania realmente participativa na cultura e na política! Saravá às mudanças!

E aí, curtiu o texto? Deixa um comentário por aqui pra eu saber o que achou e me diz aí o que a cultura é pra você, na sua vida, na sua vivência, na sua quebrada. 

Valeu! Até mês que vem!

Saravá as mudanças !

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