Desde 2004, o ofício das baianas de acarajé é reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro, pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e no dia 25 de novembro é celebrado o Dia Nacional da Baiana de Acarajé. Assim como toda culinária de matriz africana, o bolinho que leva entre os ingredientes feijão fradinho, cebola, sal e azeite de dendê, representa um elo de resistência e ancestralidade a partir da cultura alimentar.
Yalorixá no Ilé Asé Ketu Egbé Oni, que fica no bairro Jardim São Marcos, em Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo, Ana Rita, 67, baiana de acarajé desde 1981, dois anos após se mudar para São Paulo, ressalta o papel histórico dessa função e do alimento. “Estou sempre defendendo a profissão das baianas de acarajé, fomos nós que entramos nesse ramo, que trouxemos da nossa ancestralidade. O acarajé, para algumas mulheres, é quem sustenta a casa”, coloca.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.
Ana Rita aponta que o acarajé é da região de Ketu, Nigéria e Benin, e que mesmo com toda a truculência da escravidão e seus efeitos, essa culinária permaneceu e se mantém viva na cultura brasileira.
“No começo, na senzala [as mulheres] saiam vendendo, não tinham os recheios, mas saiam vendendo [os bolinhos de acarajé] no fim de tarde para pagar as alforrias das outras ou dos outros escravizados. Essa foi a função do acarajé lá na senzala”, explica.
“Depois [o acarajé] passou para dentro do axé e as filhas de Oyá, que é o orixá que representa o acarajé, começaram a vender para pagar as obrigações [religiosas]”, conta Ana Rita sobre a conexão do alimento também com as práticas e tradições de matrizes africanas.
“A comida sempre faz ponte em qualquer lugar do mundo com [o lugar de] onde você veio e isso é bom, porque isso não morreu na ancestralidade. Ainda tem pelo menos a comida que faz essa ligação, porque da religião se perdeu muito em África”
Ana Rita, yalorixá e baiana de acarajé.
Através do consumo do acarajé, a baiana afirma que nas periferias, formadas principalmente por pessoas negras, muitas pessoas se conectam com suas origens. “Tem [pessoas] que chegam e querem saber a história, conversam, perguntam, a gente explica, isso é se conectar com seu ancestral. E aí você nem conhece aquilo e o cheiro, que é do dendê, te conecta com algum lugar que você [às vezes] nunca foi, com a Bahia, com a África”, diz a baiana.
Sexta, sábado e domingo são os dias que Ana Rita vende acarajé, que é feito no Ilé e pode ser retirado no local ou por entrega. Ela também aceita encomendas para eventos, como casamentos e festivais, através do seu empreendimento Ojó Bahiano. Ela circula por eventos no território, como a festa julina da Igreja Nossa Senhora do Carmo, no Capão Redondo, onde fez boa parte de sua clientela.
“Teve um cliente que ligou para alguém lá da Bahia dizendo, ‘olha encontrei acarajé de baiana’. É tão bonito ver que a pessoa encontrou uma coisa que levou ele pra família, porque às vezes a gente não tem dinheiro para visitar a família e isso traz a família para perto”, conta Ana Rita sobre a conexão com seus clientes que são migrantes da Bahia.
Trajetória
Ana Rita foi uma das fundadoras do Movimento Negro no Campo Limpo e é aposentada com técnica de enfermagem. “Trabalhei 41 anos na saúde e como o dinheiro nunca deu, sempre vendi acarajé”, comenta sobre o início que se deu também como forma de complementar a renda familiar.
Ela é de Salvador, Bahia, e viveu no bairro do Garcia até 1978, quando se mudou para São Paulo, com 18 anos, fugindo das agressões que o pai dela cometia contra a mãe. “[Eu vim trabalhar] para uma espanhola, fiquei na casa dela por três anos. Saí de lá, entrei no hospital e não saí mais”. Ela começou a vender acarajé para complementar a renda desde que deixou de atuar como trabalhadora doméstica e passou a precisar de moradia, pois antes morava no trabalho.
“Acarajé é ancestralidade. Eu faço iguarias baianas, mas acarajé a gente faz de família. Minha avó fazia, minha mãe, [era] o quitute da tarde, porque lá [na Bahia] era tudo barato, lá você tem dendê à vontade”
Ana Rita, yalorixá e baiana de acarajé
Ana Rita relembra que sua mãe tinha o hábito de cozinhar para os filhos e que os saberes da culinária ancestral do acarajé continuam sendo passados adiante. Atualmente ela tem a companhia de sua filha, Dandara, que ajuda nas vendas e no preparo.
“Era um afeto que ela [a mãe] tinha de fazer o acarajé e dá para a gente comer, e não tinha o recheio não, viu? Eu gosto de sentir o gosto do feijão, aquela coisa que me reporta a minha infância, ao amor de mãe, daquele útero que me pariu. Eu fico muito lisonjeada vivendo de acarajé”, compartilha Ana Rita com os olhos brilhando ao falar de sua mãe, Maria Edelvira.
O azeite de dendê, que é usado na fritura, para a baiana, é o principal ingrediente do bolinho. “Porque o dendê é de lá [do Continente Africano], porque é o dendê que dá sabor, é uma delícia, é da ancestralidade. Eu acho que a gente não tem que mudar aquilo que nossos ancestrais trouxeram e que é bom, porque se você [sentir] o cheiro de dendê, já se reporta ao acarajé. Agora estão inventando de fritar no óleo. Não é a mesma coisa, até porque o óleo passa por um processo químico e o dendê se consegue fazer em casa”, comenta.
Segundo ela, o acarajé segue sendo um elemento de resistência da cultura negra no Brasil. “Eu acho que é o único lugar do mundo que guardou nossa comida, do povo negro, porque tem povo negro no mundo inteiro, mas quem guardou essa questão da comida, da alimentação, essa ligação com a África fomos nós brasileiros”, finaliza.