Reportagem

Médico de família e comunidade aponta reflexos do racismo na saúde de pessoas negras

Moradoras de diferentes territórios contam sobre situações de racismo vivenciadas em espaços de saúde e os impactos na busca por cuidados médicos.
Edição:
Evelyn Vilhena

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Indignação, raiva e dor, foram os sentimentos citados por Eva Marta, 47, ao relatar situações de negligência médica pelas quais ela tem passado desde 2019, quando começou a procurar ajuda para lidar com dores constantes que sente desde 2016. Eva tem artrite, artrose, tendinite, bursite no ombro direito e esporão nos pés. Devido às dores, desde 2020, ela é dona de casa, mas seu último emprego foi como trabalhadora doméstica.

Moradora do bairro São Marcos, na cidade de Embu das Artes, São Paulo, em uma das crises de dores que teve, Eva menciona que procurou o pronto-socorro do bairro, pois não tinha como pagar por uma consulta particular, e levou seis horas para ser atendida.  

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Eva Marta é dona de casa, sofre com dores crônicas e mora no bairro São Marcos, em Embu das Artes. (Foto: Viviane Lima)

“Ele [o médico] falou, ‘a verdade é que isso não tem cura, não sara, a senhora tem que se acostumar com a dor’. Aí eu respondi, ‘você fala isso porque não é com o senhor’”. Eva compartilha que queria ao menos que a sua dor fosse respeitada e o que recebeu foi a alegação, por parte do médico, de que ela estava nervosa. 

Situações muito parecidas também aconteceram com Fátima Martins, 43, moradora do bairro Jardim Zaira, na cidade de Mauá, em São Paulo. Fátima é assistente social em uma UBS e também trabalha como técnica de enfermagem. “Certeza que foi uma questão racial, não tinha mais nenhum preto ali, só eu. Quando eu e meu marido chegamos, a única coisa que recebemos foram olhares diferentes”, conta sobre o ocorrido no atendimento pelo convênio médico. 

Fátima Martins é assistente social, técnica de enfermagem e moradora de Mauá. (Foto: arquivo pessoal)

A assistente social diz que procurou o pronto-socorro após sentir uma dormência na mão. Ao realizar o ultrassom e ser diagnosticada com síndrome do túnel do carpo, foi encaminhada para uma consulta com o ortopedista. Ela relembra que no dia da consulta estava acompanhada do marido, José Adriano, pois ele tinha sofrido um acidente e também precisava ir ao ortopedista. 

“Ele disse, ‘você precisa fazer outros exames, não está quebrado, é tendinite’. Aí eu questionei ele, porque eu sabia que [a questão] veio do trauma de um acidente de moto. [E o ortopedista respondeu], ‘eu sou o médico, se eu estou falando que é, é porque é’”, recorda Fátima sobre a abordagem do médico ao passar o diagnóstico do seu companheiro, José Adriano. Ao consultar outro médico, o casal soube que o problema na realidade era uma fratura.

Já no seu atendimento, com o mesmo profissional, Fátima conta que mostrou seu ultrassom e explicou que estava sentindo dores. “Ele [o ortopedista] falou, ‘isso daí vai ser para sempre, você aguenta, você é forte’”, relata a assistente social.

“Eu me senti diminuída como se eu não precisasse de atendimento nenhum, como se eu tivesse que engolir calada, como se qualquer dor para mim fosse pouco. Como se qualquer coisa que venha para melhorar a vida e trazer qualidade, eu não mereça. O meu primeiro sentimento foi de impotência. Porque ele é o médico pode falar como quiser com as pessoas?”

Fátima Martins, assistente social, técnica de enfermagem e moradora de Mauá.

Ao procurar outro profissional de saúde, Fátima constatou que existiam outras soluções para a sua dor e iniciou a fisioterapia, acupuntura e o uso de medicação. 

José Adriano é morador de Mauá e passou por racismo durante consulta médica. (Foto: arquivo pessoal)

As situações relatadas não foram casos isolados. Eva, por exemplo, diz que em outra ida ao pronto-socorro avisou que era alérgica à corticóide, mas mesmo assim foi parar na emergência por negligência médica. Já José Adriano conta que em outra consulta foi questionado inúmeras vezes se já tinha usado drogas, mesmo ele afirmando que não. “Ficou uma coisa bem constrangedora, porque é chato você ser taxado só por ser preto, pobre e favelado, é horrível isso”, afirma. 

Racismo

Diversos estudos reforçam a presença do racismo em atendimentos médicos, seja em consultas, internações e em forma de violência obstétrica. Em casos de internações, por exemplo, o Boletim Saúde da População Negra, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e do Instituto Çarê, mostra que, no Brasil, entre 2010 a 2021, foram 66.496 registros de internações com situações de erros médicos devido a acidentes ou à negligência profissional. 

“A medicina [ocidental] como esse cuidado em saúde é criada e feita do branco para cuidar a partir do branco. Se o branco pratica racismo e se beneficia do racismo em todos os outros aspectos da sociedade, não seria nesse cuidado que isso seria diferente”, pontua Thiago Santos, médico especialista em família e comunidade. 

Thiago trabalha no Centro Municipal de Saúde Mário Olinto de Oliveira, no bairro Cascadura, que fica no distrito de Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro, e pontua que no aspecto da saúde, os dados de violência obstétrica são os mais nítidos. “A mulher negra no trabalho de parto recebe menos analgesia. [Esse] é um dos campos em que a saúde realmente é mais racista”, menciona o médico. 

“Em todas as instituições do nosso Estado [o racismo] é sempre mais velado. Existem algumas estratégias, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que foi implementada em 2009”, coloca. O especialista comenta que essa política tem bons dados, mas que não teve acesso a ela durante a graduação. “Essas ações, que muitas vezes o governo faz no sentido anti-racista, não são aplicadas. [Na] prática não soa como uma das prioridades”.

Outra falha que potencializa a negligência médica no atendimento à população negra, conforme aponta Thiago, é a superlotação dos centros médicos. “A distribuição das clínicas, o acesso aos profissionais, isso já é um fator que o racismo opera. Na Grande Tijuca, que é uma região de classe média, a gente tem 100% de cobertura. E a população que não é coberta é justamente de uma área mais distante, é uma população mais preta”, analisa o especialista.  

O médico ressalta que o racismo afeta a saúde e diminui a expectativa de vida das pessoas negras por terem menos acesso a diagnósticos, tratamentos e centros de saúde. Além do aspecto da saúde mental, taxa de suicídio e violência. “Se a gente sabe que o homem negro jovem suicida mais, a gente precisa ter um olhar mais atento para quando ele chega no consultório com uma queixa de saúde mental”, exemplifica.

Grupo de saúde mental que Thiago organizou no Centro Municipal de Saúde Salles Netto. (Foto: arquivo pessoal)

Thiago é especialista na estratégia de saúde da família e comunidade, área que abrange diversos aspectos das relações sociais. “A gente faz um diagnóstico comunitário para entender como é a dinâmica da região, como ela funciona e como a relação da comunidade com o território influencia na saúde”, explica o médico.

Elementos culturais e os recursos sociais que a população tem a disposição para promover saúde também são levados em consideração nesse tipo de atendimento médico. “A gente vai levantar quantas igrejas têm na região, quantos terreiros, como é a relação dessa população com o tráfico”, exemplifica Thiago sobre alguns aspectos de abordagem que a medicina de família e comunidade abrange.

“A medicina de família aqui do Brasil tenta sair um pouco dessa questão de causa de doença para resolução [e busca] olhar a pessoa como um todo. Entender além da doença, como essa doença implica para ela”, aponta o médico.

Segundo ele, em muitos casos pessoas negras não vão ao médico para evitar situações de racismo. Mas há quem não perceba essas violências, “se você não prestar atenção é imperceptível”, comenta Fátima. Como assistente social do SUS, ela diz que considerar a história e a vivência do paciente, junto com uma educação antirracista continuada no setor da saúde são pontos fundamentais para a melhoria no atendimento.

Eva conta que não tomou nenhuma providência diante das situações pelas quais passou. Fátima pretende denunciar o ortopedista por racismo para o Conselho Regional de Medicina (CRM) e para o convênio. 

“Quando você denuncia, você mostra que esse profissional, essa instituição está com um tratamento inadequado, isso protege outras pessoas e a gente, enquanto povo negro, precisamos aprender a se proteger cada vez mais”, destaca Thiago.

Thiago Santos é médico especialista em medicina de família e comunidade (MFC), no Rio de Janeiro. (Foto: arquivo pessoal)

Thiago menciona que não há uma normativa ou protocolo de atendimento pelo qual seja possível identificar uma conduta racista no âmbito da saúde. “A forma disso acontecer menos [é] divulgar [para o médico] o que é esperado de uma consulta. [Estar atento a] como que a gente deve ser tratado, não só dentro da saúde, mas em qualquer lugar, o respeito que a gente merece”, menciona o médico.

Em termos de denúncia, ele indica que a pessoa que passou por uma situação de racismo em um centro médico procure as ouvidorias locais de saúde e comunique o ocorrido para o gestor responsável pelo local. “Lembrando que racismo é crime, se realmente você está sentindo que sofreu essa violência não está errado acionar os meios legais, acionar a polícia”. 

Apesar de ainda ser a minoria, Thiago coloca que ter profissionais negros e com consciência racial na área da saúde ajuda a diminuir os impactos que esse racismo institucional pode causar. “Que a gente enquanto povo esteja cada vez mais apto para cuidar da gente mesmo. Quando eu atendo uma senhora preta dá esse sentimento de estar atendendo a minha vó e da forma que eu gostaria que ela fosse atendida, isso faz uma diferença grande nesse sentido”, finaliza o médico.

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