Na garagem da casa de número 190, na Rua Chaberá, localizada no bairro e distrito da Vila Formosa, zona leste de São Paulo, é possível encontrar uma variedade de livros gratuitos, todos com autoria de escritores negros. É nesse endereço que fica a biblioteca comunitária Assata Shakur, que além de disponibilizar livros, oferece cursos, promove debates, palestras e festas que celebram revolucionários negros referências para o coletivo, como Malcolm X e Assata Shakur.
Professor e cofundador do espaço, Kairu Kijani conta que a biblioteca se tornou um local de combate ao epistemicídio, contra o apagamento de criações e conhecimentos produzidos pela população negra. “A biblioteca é essa grande possibilidade de conhecer a nossa história e estudar os nossos teóricos, pessoas negras que produzem conhecimento e que não é tão fácil de ser acessado”, afirma o cofundador da biblioteca.
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Morador do bairro e distrito do Cangaíba, na zona leste de São Paulo, Kairu aponta que a criação da biblioteca surgiu da necessidade de ter um espaço em que as pessoas pretas pudessem se encontrar, estudar, socializar e ter momentos de lazer.
“A gente percebe o quanto a biblioteca é importante, porque vêm pessoas de diversas localidades, até de fora de São Paulo. A gente vê o quanto as pessoas [que] vêm aqui se conscientizam [e] socializam. A biblioteca é um potencial incrível para agir enquanto grupo e pensar em outras possibilidades de viver nessa sociedade que é extremamente competitiva, individualista e a gente quebra essa lógica do capital.”
Kairu Kijani, professor e cofundador da biblioteca Assata Shakur.
Kairu relembra que o processo de construção da biblioteca foi complicado, pois pelo fato de atuarem de forma autônoma, toda construção se deu a partir de recursos próprios. Outra dificuldade tem haver com o próprio diferencial do espaço. “Quando a gente, em 2017, começou a comprar livros, [o acesso a livros de escritores negros] não era como é hoje”, menciona. Ele diz que os livros eram garimpados em sebos e sites virtuais, também por conta dos preços.
O local que atualmente comporta a biblioteca era a garagem de Edneusa, mãe de uma das fundadoras da iniciativa, Tati Nefertari. Inaugurada em 2019, pela organização Ujima Povo Preto, a biblioteca carrega o histórico da iniciativa que foi fundada por pessoas conectadas ao movimento hip-hop, negro e educacional. Kairu explica como o nome da iniciativa, assim como da biblioteca, dialogam com o objetivo deste trabalho. “Ujima vem de uma palavra suaíli, e é um princípio do Kwanzaa, que é uma celebração africana feita no final do ano. O Kwanzaa tem alguns princípios e um deles é o Ujima, que significa trabalho coletivo e responsabilidade”, explica.
O professor pontua que Assata Shakur foi uma revolucionária preta e que se inspiraram nela por conta da mensagem, ideias e práticas da escritora e militante. “Ela fez parte da organização Panteras Pretas, nos Estados Unidos, e do Exército de Libertação Negra. Ela também teve uma passagem [na] luta pela educação [com as crianças], quando entrou no Partido dos Panteras Pretas. E é muito pela questão de como ela enxerga a luta do povo preto, a questão da autonomia e da combatividade”, explica Kairu sobre a homenagem.
É a própria iniciativa que mantém o espaço financeiramente. Como todos trabalham com outras demandas, a biblioteca geralmente é aberta aos fins de semana, das 9h às 18h. “Mas se alguém quiser pegar algum livro é só mandar mensagem que a gente faz o possível para abrir na semana”, coloca Kairu.
Quilombinho Beatriz Nascimento
Durante o período de férias escolares, a biblioteca também realiza ações com foco nas crianças. A atividade, nomeada em homenagem à historiadora negra Beatriz Nascimento, acontece no mês de janeiro, sábado e domingo, das 9h às 17h, com café da manhã, almoço e lanche da tarde. “Elas vêm e participam das oficinas e a gente percebe o quanto esse espaço não escolar fortalece a negritude, consciência e a socialização das crianças”, observa Kairu.
“É um espaço não escolar em que [as crianças] aprendem tanto quanto ou até coisas que não aprendem na escola por conta do currículo escolar que tem muitos conteúdos eurocêntricos”, comenta o professor.
As atividades que acontecem na biblioteca têm como base o hip-hop e Kairu conta que isso também se estende para o Quilombinho. “A gente entende o hip-hop com cinco elementos, que é DJ, grafite, Mc, B-boy e o conhecimento”, explica.
Além de hip-hop, as crianças também têm oficinas de capoeira, balé, culinária e contação de história. “No final de [cada edição] a gente faz um grafite em uma parede do bairro. Você vê a felicidade deles, [pois] é uma linguagem que acaba sendo expressada, pessoas vão passar na rua e ver o grafite que você fez”, menciona Kairu.
Segundo o professor, através das atividades as crianças percebem que diversas coisas partiram de construções realizadas no continente africano e por pessoas pretas. “Eles acabam criando senso de identidade, orgulho negro e tendo posicionamento político. É uma ética e estética negra fortalecida [junto com] os pensamentos e posicionamentos políticos”, comenta.
As interações com as crianças incentivaram o coletivo a criar um espaço exclusivamente para elas. Em 2022, o grupo fundou a biblioteca Quilombo Seu Gustavo, que é formada por livros infantojuvenis somente de escritores negros, funciona aos fins de semana das 9h às 17h, na Cidade Tiradentes.