Editorial

Ser mulher negra periférica na comunicação de direitos: reflexões a partir da Marcha Nacional das Mulheres Negras

Ser uma mulher negra da periferia trabalhando com comunicação de direitos é andar diariamente entre dois mundos: aquele que insiste em nos silenciar e aquele que construímos, com muita luta, para existir com dignidade. Nasci e cresci num território onde informação nunca foi garantia. E talvez por isso eu tenha entendido tão cedo que comunicar é também disputar poder, território e futuro.
Por:
Thais Siqueira
Edição:
Isadora Santos

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Ser uma mulher negra da periferia trabalhando com comunicação de direitos é andar diariamente entre dois mundos: aquele que insiste em nos silenciar e aquele que construímos, com muita luta, para existir com dignidade. Nasci e cresci num território onde informação nunca foi garantia. E talvez por isso eu tenha entendido tão cedo que comunicar é também disputar poder, território e futuro.

Quando escrevo, não falo apenas de um lugar profissional — mas de um lugar de sobrevivência, memória e responsabilidade. Carrego comigo o compromisso de denunciar injustiças, mas também de afirmar a potência que existe na quebrada: nossas lideranças, saberes, coletividades e sonhos.

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As estratégias que construímos para democratizar a comunicação

A Marcha Nacional é sempre um ponto de virada para nós, jornalistas e comunicadoras negras. É um espaço onde a luta política encontra a luta simbólica — e onde entendemos, mais uma vez, que não basta estar presente: é preciso registrar, narrar e disputar as formas como o país nos enxerga.

Na Marcha, organizamos estratégias que se fortalecem ano após ano:

  • Jornalismo colaborativo e comunitário — inspirado em práticas como as do Desenrola e Não Me Enrola, que produz comunicação “da quebrada para a quebrada”.
  • Tecnologia a favor da inclusão — formatos acessíveis, ferramentas de baixo consumo de dados e distribuição em múltiplas plataformas para superar desigualdades digitais.
  • Storytelling de resistência — narrativas que fogem dos enquadramentos estereotipados e colocam as mulheres negras no centro das suas próprias histórias.
  • Formação e multiplicação de vozes — oficinas, mentoras e redes que fortalecem a entrada de mais comunicadoras negras no ecossistema da mídia.

E, neste ano, um elemento essencial ganha ainda mais força: o ecossistema de Comunicação da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver.

Um espaço estratégico e coletivo que articula diversos grupos, organizações e comunicadoras para garantir que a voz das mulheres negras esteja em todos os lugares — das ruas às redes, das mídias tradicionais às comunitárias. Esse ecossistema amplia nossa capacidade de disputar narrativas, proteger nossa memória e ocupar o debate público com autonomia e legitimidade. Inclusive, se aproximando das plurais mulheridades negras que estiveram na Marcha, perguntamos “o que é Bem Viver para você?”

Bem Viver, reparação histórica e o papel do Desenrola e Não Me Enrola

O Bem Viver, para mim, não é apenas conceito político — é um horizonte de vida possível onde dignidade, afeto e pertencimento são direitos básicos. Quando penso em Bem Viver, penso nas mulheres negras que sustentam suas comunidades, chefiam sozinhas suas famílias, mesmo quando o Estado vira as costas. Penso nas nossas mães, tias, vizinhas, lideranças de bairro e de fé.

É impossível falar de Bem Viver sem falar de reparação histórica, porque nossas ausências, dores e interditos foram construídos ao longo de séculos. Reparar é reconhecer, investir e transformar.

E é exatamente nesse ponto que a missão do Desenrola e Não Me Enrola se conecta: ao narrar a periferia a partir de quem vive nela, rompemos com o ciclo de apagamento. Tornando-se prática cotidiana de reparação simbólica e política, reafirmando que nossos territórios não são carência — são potência.

A Marcha como projeto político de país

Em um contexto de ataques aos direitos das mulheres, especialmente às mulheres negras e periféricas, a Marcha se consolida como um projeto político de país. Um projeto que não depende de governos, mas que dialoga com eles. Que não se limita a reivindicar, mas propõe caminhos concretos. Que não fala apenas de dor, mas de futuro.

A Marcha nos organiza, nos forma e nos projeta para o debate público. Ela reafirma nossa centralidade na luta por democracia, justiça e liberdade. E, com esse ecossistema de comunicação fortalecido, garantimos que nossas pautas não sejam apenas ecoadas — mas compreendidas, respeitadas e transformadoras.

Foto: Ester Cruz

E algo mais que eu preciso dizer…

Quero reforçar que o jornalismo e comunicação das periferias é parte essencial da democracia brasileira. Não é um apêndice, não é um nicho. É um campo estratégico, capaz de alterar políticas públicas, narrativas e imaginários. Enquanto jornalista negra periférica, sigo acreditando que comunicar é construir um  país mais justo para todas. E que, juntas, seguiremos fazendo da comunicação e do jornalismo uma ferramenta de luta, memória e Bem Viver.

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