Na aldeia Akamassyron, em São Domingos do Araguaia, onde mora Wira Suruí, de 30 anos, liderança feminina do povo Aikewara Suruí, não têm sistema de esgoto. A água que ela e seus afetos bebem vem de um poço perfurado, sem nenhum tratamento ou filtração. Por isso, com frequência, há surtos de coceiras entre os mais velhos e as crianças sofrem com vômitos e diarréias. Há anos, nada é feito, conta.
No mês de novembro, há 10 horas de carro da terra de Wira, lideranças de todo o mundo discutiam o futuro do seu corpo e do clima do seu território na COP 30, em Belém. Embora no mesmo estado, o Pará, a falta do básico não permitiu sua ida.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.
“Foram algumas pessoas [da aldeia], mas não conseguimos incluir nossas pautas, devido a não terem nos chamado antes para as discussões”, conta Wira.
Enquanto o Brasil sediava a maior conferência climática do mundo, populações inteiras — em especial, indígenas, quilombolas e periféricas — seguiam sem acesso a direitos fundamentais. Especialistas chamam esse abandono de racismo ambiental: a exposição desproporcional de determinados grupos racializados a condições ambientais degradantes, fruto de decisões políticas que escolhem quem vive e quem morre, quem tem dignidade e quem é condenado à precariedade.
A realidade de Suruí se estende a outras regiões do Pará. Segundo o Ranking do Saneamento 2025, publicado pelo Instituto Trata Brasil em parceria com a GO Associados, o Pará concentra três dos vinte piores municípios do Brasil em saneamento básico — Belém, Santarém e Marabá. A publicação, que avalia os 100 maiores municípios do país, utiliza dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SINISA), de 2023, e mostra um cenário alarmante: “44,8% da população brasileira não possui coleta de esgoto e 16,9% ainda vivem sem acesso à água potável”.
Nos municípios com pior desempenho, o investimento médio em saneamento foi de apenas R$ 78,40 por habitante ao ano — um valor cerca de 65% abaixo do patamar considerado necessário para a universalização dos serviços, que é de R$ 223,82 por habitante.
A COP como catalisador desigual
Na Vila da Barca, comunidade histórica de palafitas em Belém, a expectativa de sediar a COP 30 funcionou como um acelerador de obras há décadas adiadas. Gerson Bruno, liderança comunitária, testemunha as transformações recentes.
“Há décadas, as famílias que residem nas palafitas sofriam com o péssimo sistema de abastecimento de água. A tubulação foi instalada no final da década de 70 e início da de 80 e, de lá para cá, infelizmente, por falta de manutenção e pelo aumento no número de moradores, o sofrimento para conseguir água na torneira era diário.”
Gerson Bruno, liderança comunitária na Vila da Barca, comunidade histórica de palafitas em Belém.

Em julho de 2025, após a concessão da Cosanpa para a empresa Águas do Pará, os trabalhos de modernização da rede começaram. “Em agosto, todas as residências das palafitas já tinham água potável e de qualidade na torneira. Havia famílias que, há anos, não conseguiam tomar banho de chuveiro. Quando o sistema foi finalmente normalizado, foi um dia de grande festa na Vila”, diz Gerson.
As obras de implantação da rede de esgoto nas palafitas começaram em outubro — pela primeira vez em mais de 100 anos de história da comunidade. “As obras da Estação Elevatória de Esgoto fazem parte do pacote de intervenções previstas para a COP 30”, reconhece a liderança. “No fim, as problemáticas da comunidade acabaram ganhando visibilidade durante a COP.”

Mas a chegada dessas melhorias expõe também a profunda desigualdade no acesso a direitos básicos. Antes das obras, os moradores faziam longas filas para pegar água em torneiras públicas, carregando o líquido em latas e baldes.
“As tubulações tinham inúmeros furos e boa parte delas ficava em meio à lama. Quando se misturavam com a maré, o mau cheiro era inevitável. A pressão da água era insuficiente para atender todas as famílias; muitas precisavam usar bombas para tentar conseguir água na torneira”, relembra o líder comunitário.
Hoje, segundo ele, toda a comunidade será atendida, que aponta ser um avanço importante, mas que não elimina outras urgências.
“Há duas décadas teve início o projeto habitacional destinado a acabar com as palafitas, mas, devido a atrasos, abandono e redução das metas, ele ainda não foi concluído.”
Gerson Bruno, liderança comunitária na Vila da Barca, comunidade histórica de palafitas em Belém.
Racismo ambiental
O estudo Áreas Protegidas na Amazônia Legal – Um retrato ambiental e estatístico, publicado pelo IBGE em 2025, mostra que as populações negras, indígenas e quilombolas da região amazônica enfrentam desigualdades estruturais severas, sobretudo em relação ao acesso a serviços de saneamento básico.
Nas Terras Indígenas da Amazônia Legal, mais de 98% dos moradores convivem com alguma forma de precariedade no acesso à água potável, à coleta de esgoto ou ao manejo de resíduos sólidos. Com relação ao saneamento, três em cada quatro pessoas indígenas na região — o equivalente a 75% — vivem sem acesso simultâneo à água encanada, esgotamento sanitário e coleta de lixo.
“Esses índices são superiores até mesmo à média nacional das Terras Indígenas, onde 58,09% dos moradores vivem com precariedade total de saneamento”, aponta o relatório.
A mesma lógica atinge os Territórios Quilombolas, em especial os localizados na Amazônia Legal, que abrigam 41,63% de todos os domicílios quilombolas do país — embora representem apenas 0,09% do total de moradias brasileiras.
Nessa região, 96,9% dos moradores convivem com alguma forma de deficiência no saneamento. E para mais de 33 mil pessoas (36,55%), a precariedade é total, sem nenhum dos três serviços básicos assegurados. A média de moradores por residência nesses territórios (3,53) também é superior à média nacional (3,25).
No município de Barcarena, localizado próximo à foz do rio Tocantins, nordeste do Pará, lideranças vivem sob constante ameaça após denunciarem à Justiça Federal e ao Tribunal de Roterdã, na Holanda, a contaminação e poluição do rio Murucupi, após o transbordamento de rejeitos sólidos das instalações da mineradora Hydro Alunorte.
Apesar das evidências das ilegalidades praticadas pela empresa, incluindo o despejo de metais pesados em área de preservação ambiental formada por vegetação e nascentes, o caso foi arquivado e não foi reconhecida a responsabilidade das empresas pelos danos ambientais na região.
A luta dos moradores do Burajuba e outras regiões traz visibilidade às chamadas de Zonas de Sacrifício, áreas geográficas nas quais se instalam empreendimentos de grande impacto e que, em sua maioria, são habitadas por populações tradicionais e/ou de baixa renda, sem aos processos decisórios que favorecem a escolhas de localização pelas empresas para instalações perigosas.
Violências ambientais
São 640 km que separam Vila da Barca da aldeia do povo Suruí. Povo que chegou naquele território após um processo de desterritorialização, em 2017, e se dividiu em 8 aldeias. Na de Wira, moram 11 famílias — cerca de 33 pessoas, entre adultos e crianças.
“Esse processo de desterritorialização que a gente teve foi porque o nosso território foi demarcado num espaço [e] lugar muito pequeno, sem água. Não passa nenhum rio”, explica. O igarapé mais próximo que ainda não secou fica a 5 km de distância.
A ausência de infraestrutura sanitária se estende a todas as dimensões da vida comunitária: não há sistema de esgoto, por exemplo. A escola, que atende do maternal ao 9º ano, está dividida em dois espaços.

“Nossas crianças não têm uma infraestrutura, uma escola adequada. Eles merendam no chão, porque a gente não tem nada. Isso é surreal”, desabafa. Quando chove, molha tudo.
Além da negligência com o saneamento, a comunidade enfrenta múltiplas violências ambientais. “O nosso território é muito impactado pelo agrotóxico, porque a gente é ilhado por fazendeiros”, denúncia Wira. A BR-153, que corta o território, traz ainda mais problemas: caminhões de mineradoras deixam resíduos, lixo hospitalar foi encontrado jogado nas áreas próximas, e a poluição do ar geram doenças respiratórias, conta.
“A gente sente o impacto das mudanças climáticas muito intensa mesmo no nosso território”, conta Wira. Em 2024, a comunidade não teve safra de castanha, base da economia local, pela falta de chuvas. “A gente teve uma perca enorme. Não choveu no nosso território. Esse ano também não está muito diferente.”

“O racismo ambiental se revela na ausência das políticas públicas e dos serviços básicos para as populações vulnerabilizadas”, explica Marcella Freitas, Presidente do Instituto A Cidade Precisa de Você, co-fundadora da Rede Brasileira de Urbanismo Colaborativo e pesquisadora das relações entre estrutura urbana e ecologias. “É um reflexo das desigualdades socioambientais históricas do nosso país, que se aprofundam com a ocorrência de extremos climáticos”.
“A vida das mulheres está totalmente diferente, está tendo muito índice de aborto. O território não estando bem, as mulheres não estão bem. Porque a gente sabe que quem leva ancestralidade são as mulheres.”
Wira Suruí, liderança feminina do povo Aikewara Suruí.
Para Marcella, no caso de Belém é importante reconhecer sobretudo os territórios habitados por comunidades extrativistas, que vivem outra relação com o manejo sustentável. Ela cita o caso da comunidade do Território Quilombola de Menino Jesus, em Bujaru, que enfrenta ameaças socioambientais e fundiárias para a construção de dois aterros sanitários na Região Metropolitana da capital paraense.
“Casos como esse vem demonstrando a urgência do reconhecimento e da demarcação de territórios populares dos povos indígenas, quilombolas e periféricos”, complementa.
Em entrevista ao Vozes da Cúpula, a liderança Takwyry Kaiapó, que esteve presente na Cúpula dos Povos, defende a necessidade do governo federal de reconhecer a possibilidade de desenvolvimento pensando nos povos e nas características de cada território.
“Existem várias formas de desenvolvimento, e um desses modelos é o desenvolvimento que respeita as especificidades socioculturais”, declara, “podemos trabalhar modelos de desenvolvimento reconhecendo o limite, conhecendo a especificidade de cada região e cada território, de cada povo. Eu acho que é isso que o governo federal precisa conhecer”.
O legado desigual da COP 30
Enquanto a Vila da Barca, pressionada pela vitrine internacional da COP 30, recebeu investimentos emergenciais em saneamento após décadas de abandono, a aldeia Akamassyron continua invisível. Ambas fazem parte da mesma região que recebeu líderes mundiais para discutir o futuro do clima. Mas apenas uma teve suas urgências reconhecidas, ainda que tardiamente e de forma incompleta.
Agora que a COP30 terminou, a pergunta incômoda permanece: como foi possível discutir soluções climáticas globais enquanto populações inteiras — especialmente indígenas, quilombolas e periféricas — seguiam sem direitos básicos como água limpa, esgoto tratado e condições dignas de moradia?
Eventos como a COP passam “uma imagem que as comunidades indígenas recebem uma garantia de projeto, né? E isso não está acontecendo com a gente”, finaliza Wira.
