Em agosto de 2025, o debate sobre adultização mobilizou a sociedade em diferentes camadas. Ao considerar os diversos recortes sociais e econômicos, as infâncias periféricas são afetadas por violências simbólicas e práticas dentro desse tema, seja no âmbito familiar, escolar ou comunitário, como conta a educadora Giselle Santos.
A especialista afirma que nos últimos anos, a partir dos estudos sobre as infâncias, tem sido incômoda a forma como crianças e adolescentes vêm sendo expostos publicamente de maneira desigual e, muitas vezes, sem cuidado ético. “Há uma superexposição que acontece sem que eles sejam ouvidos, sem que possam dizer se concordam ou não com o uso de suas imagens e histórias”, destaca Giselle, que é especialista em educação e tecnologia.
“A adultização acontece quando impomos às infâncias e juventudes um amadurecimento precoce, abrangendo diversas questões: sexualização, cobrança de consumo, responsabilidades domésticas, entre outras.”
Giselle Santos é educadora e pesquisadora sobre tecnologia, inovação e infâncias.
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Para além da exposição, ela aponta que existem outros modos de adultização das crianças que atingem, principalmente, aquelas que vivem nas periferias, problema que não é novo e reflete práticas coloniais. Gênero, raça e classe, segundo Giselle, também determinam como a adultização das crianças é percebida.
“Uma criança [negra e periférica] sozinha, fora da escola, às dez horas da noite, passa despercebida. Em contrapartida, se colocarmos uma criança branca na mesma situação, imediatamente surge a narrativa de ‘criança perdida’”, afirma.
Diferentes formas de adultização
Entre 2023 e abril de 2025, o Ministério do Trabalho resgatou cerca de 6.372 crianças e adolescentes do trabalho infantil no Brasil: 2.564 em 2023, 2.741 em 2024 e 1.067 nos primeiros meses de 2025. No total, 86% dos casos envolviam formas de exploração relacionadas a atividades com graves riscos ocupacionais e sérios prejuízos à saúde e ao desenvolvimento integral de crianças e adolescentes.
Sobre o perfil das vítimas, a maioria são meninos (74%), e 26% são meninas, sendo que 91 tinham até 13 anos, enquanto 4.130 tinham entre 16 e 17 anos. As principais atividades em que o trabalho infantil foi identificado são comércio, alimentação, oficinas mecânicas, agricultura e pecuária.
“Crianças de favelas e periferias constantemente são tratadas como trabalhadoras, com um falso rótulo de pequenas guerreiras. São empurradas para uma cultura do cuidado desde muito cedo, onde precisam cuidar, por exemplo, daquele irmão mais novo, vender algo na rua para ajudar na renda da casa, etc. Essas crianças crescem [num contexto de] normalização da vulnerabilidade.”
Giselle Santos é educadora e pesquisadora sobre tecnologia, inovação e infâncias.
A pesquisadora destaca que o ciclo da adultização é constantemente reforçado pela ausência do Estado, especialmente em territórios marcados por uma arquitetura punitivista e pela falta de espaços de lazer ou proteção social, o que faz com que a vida das crianças seja moldada desde muito cedo.
“Enquanto comunidades periféricas criam sua própria rede de sobrevivência – acesso à água, luz, escola – as crianças seguem vítimas diretas dessa ausência do Estado que deveria garantir creche, transporte e políticas públicas para que a escola seja um espaço de cuidado, especialmente na ausência daqueles responsáveis que precisam trabalhar.”
Giselle Santos é educadora e pesquisadora sobre tecnologia, inovação e infâncias.
Falta de acolhimento e proteção deixa crianças e adolescentes vulneráveis
Para Giselle, o problema ainda é atravessado pela forma como o cotidiano familiar, escolar e comunitário frequentemente negligencia o cuidado com as crianças e adolescentes.
“Muitas escolas e outros espaços de ensino ignoram ou atropelam direitos fundamentais previstos no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), tratando a imagem e a participação de estudantes como algo disponível para uso automático”, explica.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que família, sociedade e Estado, de forma conjunta, têm a responsabilidade de proteger crianças e adolescentes de quaisquer abusos e/ou negligências. Isso significa que todos devem assegurar sua dignidade, vida, saúde, educação e liberdade, protegendo-os de exploração, violência e descuido, conforme o Artigo 227 da Constituição Federal.
“Quando falamos em ‘passar por cima dos direitos’, estamos falando de um conjunto de garantias legais — como o direito à privacidade, ao consentimento, o uso ético e à proteção da imagem — que deveriam vir sempre em primeiro lugar”, específica.
A educadora defende que o direito ao brincar e a interação social são pilares fundamentais no desenvolvimento socioemocional de crianças, influenciando sobretudo a construção de vínculos duradouros e habilidades na primeira infância.
Em contextos de vulnerabilidade — seja pela precariedade de cuidados, pela falta de proteção social ou pela exposição precoce às tecnologias — o desenvolvimento pleno das crianças acaba limitado.
“Desde a infância, o direito ao brincar, à experimentação e à expressão livre vai sendo controlado, tornando-se atividade dirigida. Até o direito à imagem passa a ser mediado. Dessa forma, direitos como o de uma educação plena acabam disputando espaço quando a tecnologia se sobrepõe ao que deveria ser prioridade”.
Giselle enxerga um avanço nesse debate, no entanto, ressalta que apenas a visibilidade das redes não são o suficiente para frear o avanço da adultização. Para ela, é importante ressaltar que a adultização não acontece de uma única forma e que a percepção popular não pode se limitar à ideia de isso acontece somente quando a criança quer se comportar como um adulto.
Ela ainda reforça que, apesar de se chocarem com o tema por meio das redes sociais, muitas pessoas continuam a explorar o trabalho infantil em outros ambientes.
“É curioso perceber que muitas pessoas que entraram nessa discussão são as mesmas que contratam menores de idade para trabalhar como babá e acham isso natural”, afirma.
Legislação e ambiente digital
Em agosto, o Congresso e o Senado Federal aprovaram o projeto de Lei nº 2.628, que estabelece regras para tentar combater a adultização de crianças no ambiente digital, seja por redes sociais, sites, programas e aplicativos, jogos eletrônicos ou plataformas específicas. O texto foi sancionado pelo presidente Lula (PT), no dia 18 de setembro de 2025.
Giselle analisa que o projeto de lei é um passo importante, mas alerta que é preciso criar canais acessíveis de denúncia e investir em conscientização para que crianças e adolescentes reconheçam situações de abuso e vigilância, quando estão sendo controladas por abusadores, especialmente nas redes.
Além disso, há necessidade de simplificar e popularizar as explicações sobre o funcionamento da lei, para que seus efeitos cheguem de fato à população.
“Eu aposto na pedagogia da fofoca: a gente cria interesse pelo assunto, leva a informação de forma acessível, sem perder a profundidade. No debate sobre o ECA Digital, isso significa mostrar como falar sobre o projeto de lei, acompanhar seu andamento e discutir a aplicação da lei já em vigor, tornando o tema próximo da realidade das pessoas”, propõe.
Ela explica ainda que os riscos tecnológicos aparecem como consequência de uma série de carências anteriores. “As crianças passam a ser monitoradas por câmeras de reconhecimento facial, seus deslocamentos são acompanhados, e imagens acabam até em sistemas de segurança pública, podendo ser usadas para associá-las a situações ou delitos que não cometeram”, frisa ao alertar sobre a falta de procedimentos claros.
“Não temos uma cultura de protocolo e sim reação. Vê qualquer B.O., qualquer caso que aparece — vazamento de foto, criança assediada na internet — e a gente corre para ‘resolver’. Mas não existe um protocolo sistematizado”, alerta Giselle.
Nesse sentido, ela aponta que proteger crianças e adolescentes de abusos e violências envolve cinco passos essenciais:
- Detectar o risco e entender o que está acontecendo;
- Responder rapidamente para interromper a exposição e proteger a criança;
- Documentar as evidências de forma sigilosa, sem compartilhar imagens;
- Denunciar às autoridades competentes, como direção da escola, polícia, conselho tutelar ou Ministério Público;
- Direcionar ou escalar o caso, acompanhando todo o processo até a resolução.
Além disso, as práticas ancestrais são estratégias que ajudam a construir uma proteção mais próxima e efetiva. “Nos esquecemos daqueles rituais de conversa: depois de assistir a um desenho, a criança conta o que entendeu ou por que gostou. Sentar em roda, ouvir os mais velhos. Fortalecer a rede de apoio protege tanto quanto qualquer recurso digital”, coloca.
“Se a gente troca 10 minutos de tela por 10 minutos de conversa, já estamos criando confiança e vínculo. Não é sobre saber tudo de tecnologia, e sim criar um ambiente onde o diálogo exista, e aí sim dá para introduzir o digital de maneira consciente. Essa rede protege, cuida e fortalece, caso algo dê errado”, conclui.
Casos de trabalho infantil, maus-tratos, negligência ou outras violações dos direitos de crianças e adolescentes podem ser denunciados de forma anônima e gratuita pelo Disque 100.

