Em geral, quando falamos de como as restrições de acesso à saúde reprodutiva impactam as mulheres negras, falamos que elas são as que mais morrem e as mais encarceradas. E, infelizmente, tudo isso é verdade.
A América Latina é um dos lugares com as maiores restrições ao aborto no mundo, e as mulheres negras as principais vítimas de morte de gestantes e puérperas por falta de acesso a cuidado adequado durante a gestação, aborto, parto e puérperio (período de recuperação e adaptação física, psicológica e emocional, que dura entre 45 e 60 dias após o parto).
No entanto, como no dia 25 de novembro, acontecerá a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, em Brasília (DF), queria aproveitar para fazer algumas conexões mais felizes com o tema principal desta coluna, a Justiça Reprodutiva, e contribuir para a mudança de narrativas sobre o aborto.
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Entre as décadas de 1980 e 1990, o misoprostol, conhecido pelo nome da marca Cytotec, era vendido livremente nas farmácias do Brasil, para tratar gastrite e úlcera. No hora de comprar, a pessoa ficava sabendo que não podia ser usado por grávidas, porque poderia causar abortos ou nascimentos prematuros.
Eu sempre fico imaginando como deve ter sido o dia em que alguém teve a ideia genial de realmente usar para interromper uma gestação indesejada. Porque, o que aconteceu depois, mudou os rumos da história das mulheres.
Elas tinham descoberto que podiam usar o misoprostol para abortar em casa. Era barato e seguro. A notícia desse achado correu com o vento e revolucionou a ginecologia e obstetrícia do mundo inteiro. Tudo isso porque alguma mulher, muito provavelmente uma mulher negra, em alguma quebrada ou favela desse Brasil, descobriu que era seguro abortar com misoprostol e contou para uma amiga, que contou para outra, que contou para outra, fazendo a notícia correr o mundo. Grande é o poder de uma fofoca boa, minhas amigas.
Desde então, as mulheres passaram a priorizar a medicação ao invés de estratégias mais perigosas, como objetos perfurantes ou intoxicação e, assim, as complicações por aborto inseguro caíram vertiginosamente. Isso fez com que os laboratórios se interessassem por pesquisar mais sobre o misoprostol na ginecologia e obstetrícia. Muita água passou debaixo dessa ponte e, como já é bem sabido, hoje o misoprostol é um medicamento essencial, segundo a Organização Mundial da Saúde, para indução de parto e aborto e para manejo de aborto espontâneo e hemorragia pós parto.
Como a gente não tem o rastro dessa história, pra saber quem ou como essa descoberta aconteceu, você pode estar se perguntando porque é que estou atribuindo a descoberta e a divulgação às mulheres negras? Oras, por uma questão de desigualdade: as mulheres brancas, com dinheiro, sempre tiveram e continuarão tendo seus abortos atendidos sob demanda e sem questionamentos, em clínicas de alto padrão no Brasil e no exterior.
Quem é que sempre soube usar da sua criatividade, inventividade e coragem, para resolver seus próprios problemas? Mulheres pobres, em sua maioria, negras.
Infelizmente, o que aconteceu depois, também está registrado na história: logo que a descoberta do misoprostol se popularizou, o Brasil, o primeiro país a registrá-lo para uso obstétrico, foi também um dos primeiros a restringir seu acesso. Hoje, o remédio é de uso exclusivo hospitalar.
O Brasil é, junto com Egito e Tailândia, um dos países com a maior restrição ao misoprostol do mundo. Em vários outros, esse comprimidinho ainda está livre nas farmácias, tratando úlceras, gastrites, induzindo abortos seguros e salvando vidas.
Nós talvez nunca saberemos quem foram elas, mas ainda que o acesso tenha sido dificultado, as que vieram antes de nós nos deixaram a lição de que é justo se rebelar contra leis injustas e que entre nós, nos cuidamos. A elas, o movimento aborteiro do mundo inteiro é muito grato.
Para saber mais, deixo aqui uma indicação de leitura: Brasil: as regras que puseram o misoprostol “na cadeia”, por Morgani Guzzo, do Portal Catarinas.
E uma série com três vídeos lindos, em espanhol e inglês, sobre a história do acesso ao aborto na América Latina.
