Criado em 2019, o Sport Clube T Mosqueteiros reúne pessoas transmasculinas de diversas quebradas da capital e região metropolitana do estado de São Paulo.
Enquanto policiais circulavam pelo centro da capital paulista na manhã de domingo, em 15 de maio, dispersando a população em situação de rua aos berros e gritos. Na mesma região, a poucos metros de distância da Estação da Luz, há uma porta preta que dá acesso a um corredor estreito, seguido por um lance de escadas, do qual é possível escutar o bate-bola que vem do primeiro andar do prédio.
Ali, um grupo de jogadores se reúne semanalmente, para participar dos treinos de futsal organizados pelo Sport Clube T Mosqueteiros, um time amador formado apenas por pessoas transmasculinas. Naquela manhã de domingo, cerca de 25 pessoas compareceram à quadra para jogar futsal das 10h até às 13h.
Enquanto os integrantes do time treinavam, Juliano Rafael, 27, morador do Parque do Carmo, em Itaquera, zona leste de SP, observava de longe os movimentos dos jogadores em quadra, ainda sem coragem para participar de uma partida. Envergonhado, ele diz que leva um tempo para se soltar. “É a primeira vez que eu venho aqui, eu sou muito tímido, por conta de tudo que eu passei na minha infância”, explica o cuidador de idosos.
Juliano é natural de São Luís (MA), ele veio pela primeira vez para São Paulo com 20 anos, se apaixonou pela cidade, retornou aos 24 e, desde então, não foi mais embora. Ele relembra que começou a questionar a sua identidade de gênero quando ainda era pré-adolescente e se sentiu envergonhado ao ser maquiado e presenteado pela mãe, com uma saia, durante as celebrações de Natal.
“Desde então, eu comecei a pesquisar, porque eu tinha essa repudia com o meu corpo, porque toda vez que a minha mãe comprava uma roupa feminina para mim eu não gostava, eu me sentia diferente. Eu fui pesquisando, até que encontrei a palavra transgênero e comecei a me identificar”, relata o cuidador de idosos.
“É a primeira vez que eu venho aqui, eu sou muito tímido, por conta de tudo que eu passei na minha infância”
Juliano Rafael, 27, é cuidador de idosos e morador do Parque do Carmo, em Itaquera, zona leste de SP.
Apesar de sempre ter gostado de jogar bola, Juliano explica que a timidez é consequência de ter sido alvo de muito bullying durante a adolescência. “Eu só gostava de jogar com homens, de sair com homens, praticamente todos os meus amigos eram homens. Eu era chamado de Maria Macho, Maria João, Robinho, um monte de apelidos feios, eu me sentia tristão”, comenta.
Histórias como a de Juliano se repetem entre os jogadores que frequentam os treinos. Embora tenham descoberto a paixão pelo futebol ainda pequenos, muitos acabaram se afastando das quadras por causa da intolerância e do preconceito. O psicólogo Max Gabriel, 32, por exemplo, relembra que ficou sem jogar bola por quase uma década.
Ele relata que sempre gostou de futebol e costumava jogar com meninas até conhecer um time de rapazes quando tinha entre doze e catorze anos. Para participar das partidas, ele saia escondido de casa, porque o pai o proibia de jogar bola. “Ele não deixava, porque, teoricamente, eu era uma menina e, lá, menina não podia jogar bola”, conta o psicólogo que é natural de Maceió (AL) e hoje mora na Cidade Patriarca, zona leste de SP.
“Eu tinha uma carga psicológica negativa muito grande pra poder jogar e isso foi minando a minha saúde mental, porque eu só me sentia bem naqueles 60 minutos em que eu estava jogando e nem isso me deixavam fazer”, explica Max ― que hoje é pivô do time ― ao lembrar ter deixado as quadras após quase ter apanhado do pai no meio de uma partida de futebol.
Embora tenha começado a se identificar como homem trans entre os seis e os sete anos de idade, o psicólogo conta que o primeiro passo da transição de gênero ocorreu somente dia 23 de agosto de 2014, quando tomou a primeira dose de testosterona. Desde então, ele se sentiu mais confiante para trabalhar, estudar e retornar às quadras.
“Estar aqui é a realização de um sonho (…) Eu sinto como se fosse devolvido algo que me foi tirado”
Max Gabriel, 32, é psicólogo e pivô do time de futsal.
Assim como Max, o co-fundador do time, Tatto Oliveira, 42, explica que também começou a se identificar como uma pessoa trans na infância, quando tinha apenas 8 anos. A transição de gênero, no entanto, ocorreu somente 28 anos depois. “Eu comecei a ter acesso a informação, conhecimento, e vi que não era uma pessoa doida quando criança e queria usar gravata ou pintar a barba”, relembra, aos risos, o produtor cultural.
Apaixonado por futebol desde pequeno, Tatto conta que cresceu assistindo outros homens treinando e sonhando em, um dia, fazer igual. Na escola, sofria muito preconceito porque, na época, ainda era visto pela sociedade como uma mulher lésbica e acabava sendo vítima de muita agressividade o que, aos poucos, foi o afastando das quadras.
“[O futebol] é um lugar no qual, muitas vezes, as pessoas vão para descontar raiva e acabam descontando nas outras pessoas. Para mim, era um lugar onde eu ia para descontar, sei lá, às vezes, uma solidão que eu tinha dentro de casa, de não poder falar para a minha mãe que eu era uma pessoa trans”, comenta o produtor cultural que mora na Vila Fundão, Capão Redondo, e deu origem ao Sport Clube T Mosqueteiros em 2019.
A escolha do nome do time foi motivada pelo clássico literário “Os três mosqueteiros”, escrito em 1844 pelo romancista Alexandre Dumas. Uma das frases mais marcantes da obra é o lema que os três amigos compartilham e é justamente daí que surge a inspiração. “Se estamos bem ou mal, a gente, de alguma forma, se ajuda. Então, é um por todos e todos por um”, explica Tatto Oliveira.
Longe das quadras, o biólogo Eli Campos de Oliveira, 33, faz parte da equipe de comunicação do time e confirma: ali ele realmente se sente em família. “Aqui você se reconhece em cada um deles, passa a ser um pedacinho, uma família mesmo. A gente se preocupa um com o outro, pode ser muito simples e pequeno, mas o fato de você chegar aqui e abraçar cada um já faz diferença”, comenta.
Todo domingo de manhã ele faz o mesmo trajeto do Jardim Santo Antônio, em Osasco, até o centro de São Paulo. O biólogo diz que não perde um treino do time e explica que estar cercado de pessoas que entendem como ele se sente não tem preço. “Antigamente era totalmente introvertido, muito tímido quanto à comunicação. Hoje não. Hoje eu consigo falar, eu faço parte de alguma coisa, eu me sinto pertencente”, prossegue.
De acordo com o capitão do time, o marido de aluguel Matheus Oliveira, 34, criar uma rede de apoio que supere os limites da quadra é muito importante, especialmente para quem não possui isso em outros lugares. “Tem meninos que moram em abrigos, tem outros que não têm emprego, a família não aceita, têm diversas questões”, explica.
Matheus é natural do Guarujá e atualmente vive em Carmo Messias, na cidade de Ibiúna, a 70 quilômetros de distância da quadra onde os treinos de futsal são realizados todos os domingos. Ele entrou para o T Mosqueteiros em agosto de 2021 como treinador e, pouco depois, se tornou capitão do time.
Durante a entrevista, ele celebrou a vitória do time na modalidade de futsal da 1ª edição dos Jogos LGBTQIAP+, realizada em novembro do ano passado. Recentemente, no dia 18 de junho, o T Mosqueteiros também foi campeão da Taça da Diversidade, campeonato de futebol voltado apenas a times LGBTQIAP+.
Segundo os jogadores, o SCT Mosqueteiros faz parte de um movimento que busca transformar o esporte mais popular do país num espaço que acolha os corpos e as identidades de todas e quaisquer pessoas, especialmente daquelas que não se identificam com a binariedade de gênero imposta pela sociedade, que determina, desde o ventre, o futuro de uma pessoa de acordo com os órgãos genitais.
O professor e analista de diversidade e inclusão, Bernardo Gonzales, 33, joga em times transmasculinos desde 2017, mas permaneceu dez anos afastado das quadras por não se sentir acolhido dentro do esporte. Hoje, ele defende que construir espaços como o T Mosqueteiros é criar uma narrativa de sucesso para as pessoas trans, porque o desfecho mais comum, no mundo, é o do suicídio e do fracasso.
“Não acredito em herói, não acredito em salvacionismo, acredito que as pessoas salvam a si mesmas, mas o que a gente pode produzir, enquanto coletivo, são histórias de sucesso, de alegria e de coletividade para que outras pessoas sintam a possibilidade de também compartilharem e se somarem a este processo”, comenta o analista que mora na Vila Guilhermina, zona leste de SP.
Atualmente o time busca parcerias de iniciativas, públicas ou privadas, que possam ajudar na manutenção do espaço e dos gastos que são custeados pelos próprios membros. “A gente pede que as pessoas não apenas olhem e batam palma, mas apoiem, porque é um projeto que precisa de financiamento ou até mesmo de profissionais, como psicólogos e nutricionistas”, comenta o co-fundador Tatto Oliveira.
Confira algumas imagens do time em campo.
“Apenas para alugar a quadra são 760 reais todos os meses, o que, às vezes, são 35 reais para uma pessoa que não pode pagar, porque faria falta em casa. Além da própria condução ou da condição que ela vai chegar aqui: se tomou um café, se vai conseguir treinar ou vai acabar passando mal”, finaliza.
Embora o time seja formado exclusivamente por pessoas transmasculinas, qualquer pessoa interessada ― independente da orientação sexual ou da identidade de gênero ― pode frequentar os treinos que acontecem, todo domingo, entre as 10h e às 13h, na região da Luz, no centro da capital paulista.
Para participar, o time pede apenas uma contribuição destinada à arrecadação do valor cobrado pela mensalidade da quadra. Para saber mais, acesse o perfil @sctmosqueteirosoficial no Instagram ou entre em contato através do e-mail ncresistencia@gmail.com.