Documentário preserva memória do artista Daniel Marques e debate saúde mental nas periferias

Renato Cândido, cineasta negro e diretor do documentário, fala sobre o cuidado com a saúde mental da população periférica, além da vida e arte do artista que se suicidou em 2017 no auge da sua carreira como trabalhador da cultura.
Edição:
Ronaldo Matos

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O documentário “Diga o que quiser! eu vou ser feliz à beça!”, dirigido pelo cineasta negro Renato Cândido, foi lançado no mês de maio de 2023 e está em circulação por diversos cinemas brasileiros, como o Circuito SPCine. O longa metragem mostra o legado cultural e a preservação da memória de Daniel Marques, artista que se suicidou, em 2017, com 26 anos, e problematiza o cuidado com a saúde mental da população negra e periférica.

Renato explica que o artista fazia parte de uma geração de artistas do começo do século 21 que carregava a importância do legado e memória para ampliação da arte nas periferias.

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“Daniel viveu isso, e sua geração passou a acessar políticas públicas, como o programa VAI [Valorização de Iniciativas Culturais]. Na mesma época teve a semana de arte da periferia. Sérgio Vaz dizia que era a primavera artística da quebrada, em 2007”, afirma o cineasta negro.

Confira o trailer do longa metragem.

Daniel era morador do Itaim Paulista, bairro do extremo leste de São Paulo. Do candomblé, filho de Oxóssi, ele expressava toda sua ancestralidade na arte que produzia como escritor, músico, ativista social e articulador cultural.

Querido e respeitado nos variados ambientes que frequentava, o artista serviu de exemplo e referência para a periferia, sendo um dos fundadores do coletivo literário ‘O que dizem os umbigos”, sarau que nasceu em 2009 e marcou época do surgimento de encontros de literatura periférica, sobretudo na zona leste da capital, por fazer debates importantes sobre negritude e panafricanismo, questões LGBTQIA+, sempre com o artista muito participativo.

“Vejo o Dani nesse momento da encruzilhada da história. Além de ser brilhante e muito inteligente nas análises políticas que fazia, ele era muito aguerrido em relação as questões LGBTs”

Renato Candido, cineasta
Parte do filme foi produzido durante a pandemia de Covid-19. (Reprodução: Arquivo Pessoal)

O longa entrevista diversos artistas entre músicos, poetas e escritores que evidenciam Daniel como sua referência cultural e política, detalhando o papel dele para incentivar atividades culturais nas quebradas, locais historicamente negligenciados em relação à arte.

Bissexual, Daniel vivia na pele apreensões emocionais e a dificuldade de falar sobre seus problemas pessoais, características da masculinidade negra. Semelhante a grande maioria das pessoas nas periferias de São Paulo, o artista atravessava dificuldades financeiras, sem acesso digno à saúde e moradia, por exemplo.

“Vejo o drama de muitos homens negros ai. Mesmo o Dani sendo uma pessoa bisexual, existe um entrelaçamento entre condição de vida e afeto para um homem negro. Isso é muito complicado em relação à saúde mental”, aponta Renato.

“Vejo o drama de muitos homens negros ai. Mesmo o Dani sendo uma pessoa bisexual, existe um entrelaçamento entre condição de vida e afeto para um homem negro. Isso é muito complicado em relação à saúde mental”

Renato Candido, diretor do filme

A pressão para manter condições básicas de cidadania transformou a vida de Daniel, sua poesia, numa prosa sem palavras a capela. Daniel se suicidou em 2017, mas deixou seu legado nas artes que produzia.

O filme evidencia que as pessoas que Daniel influenciou carregam suas memórias e as eternizam da mesma maneira que ele encarava a vida. Com arte e poesia.

O cinesta negro Renato Candido idealizou o filme logo após o falecimento de Daniel Marques. (Reprodução Arquivo Pessoal)

A produção do documentário

Renato Cândido, mestre em cinema e audiovisual, atuante no cinema desde 2002 e professor da área, encarou diversas dificuldades enquanto homem negro para concretizar a produção do documentário, além do agravante da pandemia de covid-19.

A ideia de elaborar o filme surgiu assim que Renato recebeu a notícia do falecimento do Daniel. Daí começaram os primeiros corres para viabilizar a produção.

O diretor explica que enfrentou obstáculos financeiros para conseguir articular o documentário. “Batalhei para caramba pro VAI. Tentei em 2018 e 2019, daí conseguimos no ano seguinte, mas com muita lua”.

O programa VAI, política pública de fomento à cultura produzida por coletivos culturais das periferias de São Paulo, disponibilizou R$ 80 mil, quantia essa, segundo Renato, impossibilitou a realização de diversas ideias e técnicas de produção. Além das entrevistas captadas no longa, muito mais pessoas expressariam suas artes e performances em memória ao Daniel caso o investimento fosse maior, por exemplo.

“Isso mostra o quanto histórias negras ainda têm muita dificuldade de conseguir editais maiores. Imagina ter um orçamento de 300 mil, o tanto de coisas que poderíamos fazer mais da hora. É difícil romper com as travas do racismo”, ressalta Renato.

Em razão do baixo orçamento, e por respeitar o distanciamento social da época, o documentário trouxe mais entrevistas do que performances artísticas. Isso contribuiu, também, para as pessoas elaborarem o luto.

Com uma equipe majoritariamente negra, a produção fez imagens na praça Vila Mara e no Parque Itaim, ambas quebradas na zona leste. Também rolou filmagem na praça Daniel Marques, espaço que ganhou seu nome como homenagem.

“Os filmes que eu faço emocionam. Esse é um longa que emociona a galera. Ainda que eu queria que tivesse mil pessoas assistindo, as poucas pessoas que assistiram saíram impactadas com o filme”, completa Renato.

O trabalho foi concluído em setembro de 2022. Antes do lançado em maio de 2023, Renato conta que houve algumas exibições no Centro Cultural da Juventude, no Itaim Paulista. O filme está disponível no Circuito SPcine, em São Paulo.

 

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