Durante as entregas de marmitas para a população em situação de rua no Jardim Miriam, na zona sul de São Paulo, as agentes perceberam a necessidade de expandir o atendimento e começar a monitorar a saúde dessa população na região.
Criado em 2020, em meio a pandemia da Covid-19 no Brasil, o projeto Agentes Populares de Saúde da Uneafro, tem como objetivo capacitar líderes comunitários para se tornarem agentes dentro de seus próprios territórios, ação que abrange todo estado de São Paulo através de núcleos de atuação. O núcleo localizado no Jardim Miriam, bairro pertencente ao distrito de Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo, ajudou a fundar o projeto e atualmente atende pessoas em situação de rua na região.
Atuando diretamente com os cursinhos populares e com a iniciativa Pagode na Disciplina, Luana Vieira, Leticia Santos e outros organizadores, perceberam a necessidade alimentar que os jovens e as famílias da região estavam passando durante a pandemia, principalmente com as aulas paralisadas.
“Assim que anunciaram a pandemia e fechamento das escolas, a Luana que é a diretora geral do Pagode na Disciplina teve a ideia de fazer marmitex, porque a gente sabe que na comunidade, as crianças além de irem pra escola pra alfabetização, vão também por conta da alimentação”, relata Letícia Santos, coordenadora do núcleo de cursinho da Uneafro no Jardim Miriam, agente popular de saúde e irmã de Luana.
Inicialmente, o dinheiro para a compra dos itens necessários para a distribuição das marmitas veio através da Luana Vieira, que logo passou a ter o apoio da Uneafro, além de doações de diversas pessoas. Atualmente as marmitas para a população em situação de rua são distribuídas com o apoio da Uneafro, e as cestas básicas para as famílias da região, são doadas através da campanha “Tem Gente com Fome”, puxada pela Coalizão Negra por Direitos.
Nos primeiros meses, as marmitas começaram a ser feitas e entregues aos estudantes, motivadas principalmente pelo período em que as escolas estavam fechadas. Mas após o núcleo identificar as lacunas que aumentaram no território, as marmitas passaram a ser entregues para pessoas em situação de rua.
Por dia, começaram a ser entregues 200 marmitas para os jovens estudantes, depois vieram os pais, tios e outros parentes dos alunos, e com quinze dias, chegou grande parte da população em situação de rua na região. Com o surgimento da nova demanda, mais de 600 famílias foram cadastradas para a retirada de cestas básicas, e a entrega das marmitas foi direcionada apenas à população em situação de rua.
“Começamos a fazer um mapeamento das famílias que têm condições de cozinhar em casa, de fazer o alimento… então a gente entrega a cesta básica para essas pessoas e deixa a marmitex apenas para as pessoas em situação de rua”, explica Letícia.
Agentes Populares de Saúde da Uneafro
O contato direto com a população em situação de rua da região, que estavam presentes todos os dias nos mesmos horários para fazer a retirada da marmita, despertou nas Agentes Populares de Saúde do núcleo, a necessidade de incluí-los também no projeto, pois Letícia e Luana perceberam a desinformação e desassistência que afetam fortemente esse grupo.
“Através das marmitex a gente começou a pensar: ‘o que mais tá faltando pra comunidade?’ Porque os moradores de rua, todos eles vem desde o ano passado, são sempre os mesmos rostos e aí às vezes faltava um e a gente perguntava. E aí começou vir essa necessidade de ter algo a mais no território”
conta Letícia, que relembra de uma conversa em que perguntou sobre uma pessoa que acompanhava e um colega a informou que a pessoa havia falecido, mas que não tinha como saber se era ou não devido a Covid.
O projeto Agentes Populares de Saúde da Uneafro, consiste na formação de agentes de saúde em cada comunidade, para o mapeamento de pessoas infectadas na região. Essas pessoas são monitoradas semanalmente pelas agentes de saúde, que realizam visitas na residência, contato via telefone com o paciente e os parentes, fornecimento de medicamentos, acompanhamento ao hospital e internação. Os agentes fazem a ponte com os médicos voluntários do projeto, que analisam caso a caso e instruem os agentes nos próximos passos.
“Quando temos algum infectado, sempre priorizamos o monitoramento total da família para tentar bloquear a disseminação do vírus, visto que o ambiente familiar é sempre em cômodos muito pequenos, sem ventilação, etc”, esclarece Luana Vieira.
Bruna, Gladis, Amanda e Cleber foram os médicos responsáveis por pensar na ideia do projeto. “Depois de uma reunião começamos a pensar e estruturar os agente populares de saúde em um esquema inspirado no SUS, pessoas da própria comunidade ali do local, da região, sendo capacitadas para poderem monitorar casos de covid”, conta a médica, Bruna Silveira.
Além de estar na coordenação do projeto, Bruna Silveira é a médica voluntária do Núcleo do Jardim Miriam. Ela diz que um dos principais objetivos do projeto é garantir que quem não precise ir ao hospital, fique em casa, tanto para evitar sobrecarga dos serviços de saúde, quanto para evitar a medicação desnecessária.
“Quando os casos são leves, nós temos critérios para isso, eles [agentes de saúde] são treinados para saber quais casos são leves, fazem o monitoramento, junta tudo, e no final do dia passam para o médico que está na escala, aí o médico avalia todos os casos do dia e vê se tem algum que precisa falar com a pessoa, e vai mandando as orientações gerais e monitorando através das agentes”
explica Bruna sobre os atendimentos, ressaltando que as agentes populares de saúde monitoram os casos de Covid e também os casos de pós-Covid.
Com a população em situação de rua o processo é um pouco diferente. Letícia conta que faz o monitoramento com o termômetro de testa e mede a saturação para saber como eles estão se sentindo ou se desenvolveram algum sintoma, isso na própria fila para retirar a marmita. Ela também monitora para saber se eles já tomaram a vacina ou não.
Na fila acontece todo o processo de conscientização a partir de conversas, cartilhas informativas, entrega de máscaras e álcool gel para todos. O núcleo também sai nas ruas com uma caixa de som em cima de um triciclo, alertando sobre os cuidados de prevenção que é necessário ter com a doença.
Quando uma pessoa em situação de rua não vai até a fila para retirar a marmita, Leticia e outros agentes saem em busca dela para saber o que aconteceu, já que diferente de outras pessoas monitoradas pelo projeto, eles não têm local fixo para serem encontrados. Para realizar o acompanhamento, sempre vão pessoalmente em busca da pessoa que possa estar infectada.
A coordenadora do núcleo conta que já tiveram casos de quatro pessoas que fizeram o monitoramento e foi um momento delicado, porque eles tiveram sintomas graves, um deles chegou a ficar internado, e tiveram que procurá-lo pela região após não ir retirar a marmita, o que despertou um sinal de alerta nas profissionais.
“Eu precisei ir na praça do Jardim Miriam e outras próximas a região procurar aquele que estava naquele momento com o vírus. Aí mede a saturação, mede febre, dá medicamento, então eu ficava responsável pelo medicamento e todos os dias no horário do remédio eu saia a procura dessa pessoa”, conta Letícia, sobre o caso de uma pessoa que foi infectada.
Luta contra a desinformação
Para a médica Bruna Silveira, a desinformação é um dos maiores desafios do projeto, em todas as escalas e com todos os públicos. Desde fake news em relação a eficácia das vacinas, uso de máscaras, até os remédios contra indicados e sintomas da doença.
A conscientização é feita através das campanhas da internet que atinge principalmente o público jovem, até os lambe-lambes nos postes, entregas de cartilhas informativas, e o boca a boca na rua, com uma caixa de som no triciclo.
“A gente viu muito isso, qualquer pessoa do projeto que a gente monitorou que bateu no posto de saúde, precisando ou não, voltava com o tal do ‘Kit Covid’ apresentado de diversas formas, mas sempre com medicações que não tinham evidência contra a Covid, e que não só não iria oferecer benefícios, mas ofereceria riscos”
alerta Bruna Silveira.
Letícia também lidou diretamente com a dificuldade de conscientizar a população em situação de rua para se protegerem da doença, muitos não queriam usar as máscaras e achavam desnecessário passar álcool em gel com tanta frequência. A dificuldade inicial também foi conquistar a confiança deles, que acreditavam que os agentes poderiam ser portadores da doença e expuseram uma triste realidade:
- Mas senhora, o Covid ele nao pega através de contato? – (pessoa em situação de rua)
- Sim, é através de contato. – (Leticia)
- Então é mais fácil vocês passarem pra nós, do que nós pra vocês. Quem vai pegar na mão de um morador de rua? Ninguém pega na nossa mão – (pessoa em situação de rua)
Compartilha Letícia sobre um dos diálogos que teve ao longo dos acompanhamentos.
Além disso, Luana conta que o processo de repetição de todas as medidas de segurança precisa ser constante. “Temos que ficar repetindo diversas vezes, pedindo para fazer uso da máscara, de usar álcool, perguntar se tomou vacina… tem morador de rua que às vezes está sob efeito de álcool ou drogas e que não sabe dizer se tomou vacina”, expõe Luana Vieira, uma das coordenadoras do projeto no Núcleo do Jardim Miriam.
Espaço de confiança
A construção de um ambiente confortável para todos veio com o tempo, pois a população conseguiu construir laços e confiar nas agentes de saúde do projeto. “Hoje eles mesmos se organizam na fila, eles falam ‘ah, é um metro de distância’. Tudo foi uma construção, um linguajar deles, porque você tem que saber lidar com uma pessoa nessa situação”, relata Letícia.
Para Bruna Silveira, a confiança desenvolvida nas agentes e o processo de construir um ambiente que além de amparar a saúde, garanta a alimentação nesse momento duro da pandemia, faz com que o trabalho seja melhor desenvolvido, de forma rápida e eficiente, principalmente para alertar toda a população do bairro referente às fake news.
“A Letícia e a Luana já tem esse vínculo com a população local, seja as que têm moradia, ou as que estão em situação de rua e por conhecerem tanto elas, na vigência de qualquer sintoma, eles já sabiam para onde correr […]. Não à toa, a gente viu que as taxas de letalidade e mortalidade do nosso projeto são muito abaixo das taxas de letalidade da Covid no Brasil”, enfatiza Bruna Silveira sobre a eficiência do projeto no combate a pandemia de coronavírus.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios. O conteúdo dos artigos aqui publicados é de responsabilidade exclusiva dos autores e não reflete necessariamente a opinião das organizações.