Inspirado no rapper Tupac Shakur e na série ‘Um Maluco no Pedaço’, o metalúrgico Anderson Lemes usou o pseudônimo de um personagem para começar a assinar as primeiras poesias na época do Orkut.
Anderson Lemes dos Santos, é morador da Vila Nogueira, bairro de Diadema, região do grande ABC. Ele conta que começou a ter consciência sobre como a sua poesia tocava as pessoas em meados dos anos 2000, durante o tempo que passava nas redes sociais daquela época.
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“Colava com os camaradas na lan house do bairro, eles queriam mandar um scrap pras minas e me pediam pra escrever umas paradas da hora. Nunca mandava os poemas em meu nome, tinha um pouco de vergonha, então usava um pseudônimo: Rafael do gueto”, relembra o escritor.
O personagem faz parte da série americana Um Maluco no Pedaço, que fazia muito sucesso naquela época e conta a história de um jovem, morador de um bairro periférico da Filadélfia que se muda para a casa dos tios ricos, no bairro nobre de Bel Air. Com a mudança, o garoto precisa se adaptar ao novo estilo de vida.
“O Will (personagem de Will Smith no série) queria conquistar uma gatinha e meteu essa história de poeta, dizendo que conhecia o tal ” Rafael do gueto, mas o cara não foi ao encontro, era uma mera invenção pra impressionar a menina, então o mordomo Jeffrey se passou pelo dito cujo – acabei usando o Rafael do Gueto com o mesmo propósito”, conta o poeta, enquanto sorri desta lembrança.
Quem não viveu o auge do Orkut, a rede social mais popular dos anos 2000, não se lembra, mas o Scrap era um mural de recados dedicados a textos mais curtos. O espaço também era utilizado com o propósito de flertar com o envio de recados apaixonados entre os jovens.Diferentemente dos primeiros versos, os textos de Anderson são inspirados em questões sociais e com reflexões sobre o cotidiano. Segundo ele, a mudança de perspectiva aconteceu a partir do contato com o RAP, com destaque para o rapper americano Tupac.
“Esse cara me fez enxergar a poesia por outro ângulo. Me deu um teor mais crítico, mais Thug Life (vida loca). Mesmo não entendendo muito bem o idioma, sua maneira de mesclar as palavras, a melodia e também seu ativismo me incentivou a escrever sobre a realidade”
Anderson é escritor e metalúrgico.
O passado ensina
que a necropolítica
Rouba as pessoas
e vende chacinas
Ouvimos do Ipiranga
gritos retumbantes
Deitados nas esquinas
Vidas as margens flácidas
No berço da carnificina
Este é um trecho do poema “Voz do Brasil”, que faz alusão ao jornal de mesmo nome veiculado em emissoras de rádio com notícias sobre o cenário político e econômico do país.
“Neste poema eu inverto os valores nacionalistas e trago a realidade que vivemos. O mais recente publicado foi Corações de Gaiolas, uma crítica ao evento do 7 de setembro, que trouxe o coração de Dom Pedro para o Brasil”, conta.
Anderson publica os poemas no seu perfil de Instagram Rythmandpoesia.
Sobre o processo de escrita, Anderson afirma que é algo bem simples. Algumas poesias, segundo ele, nascem em forma de música e com o celular na mão anota tudo no bloco de notas.
“Gosto de usar a fonte Osvald itálico, de cor branca e fundo preto. Faço a correção ortográfica através de um app e tá pronto”, revela com ar de satisfação.
Trabalhando no turno da noite, ele conta que o silêncio da fábrica e da cidade favorecem o trabalho da mente: “Fiz muitos versos nessa época, no meu horário de janta e até mesmo no horário de trampo. Colocava a máquina pra rodar e marcha”, diz.
Para ele, viver da arte e de escrever poesias é algo ainda distante. A função que exerce como metalúrgico garante o sustento da casa, da esposa e dos três filhos, mas diante disso alega que está feliz com as experiências que a escrita tem proporcionado.
“Não vou deixar uma fortuna após a morte, então queria deixar algo mais valioso: meus pensamentos para a posteridade. Se futuramente meu trabalho resultar em alguma renda será muito bem vinda, com certeza!”, afirma.
Anderson sempre acompanha as notícias distribuídas pelo sindicato dos metalúrgicos do ABC, para estar inteirado dos seus direitos como trabalhador. Em novembro de 2021, a Tribuna Metalúrgica criou a seção poemas do ABC – sabendo disso, Anderson entrou em contato com a Redação e enviou o primeiro texto intitulado “A cor da minha cor”, que posteriormente, foi publicado no site.
“Recebo muito apoio dos caras do trabalho, eles também me chamam de Mandela – por que passei um bom tempo lá lendo a autobiografia do ex-presidente da África do Sul. Isso me motiva bastante! Espero ser essa referência dentro e fora do chão de fábrica”, diz.
A atitude de Anderson se tornou um fato marcante que impactou o ambiente de trabalho e despertou a admiração dos colegas e de líderes sindicais.
“Quando publiquei meu primeiro poema na Tribuna Metalúrgica, um dos representantes da Comissão Sindical da empresa saiu pelos corredores divulgando meu trabalho. Achei legal pra caramba! No outro dia os caras estavam me chamando de poeta”, finaliza.