Entrevistados afirmam que a realização de terapia por meio de plataformas de reunião ou chamadas de voz via celular fazem parte de uma medida emergencial para democratizar o acesso a saúde mental, demanda que cresceu generosamente junto com as desigualdades sociais que se agravaram durante a pandemia.
Você já parou para pensar na importância de obter autoconhecimento para cuidar da saúde mental? Você acha que esse é um papo furado ou coisa de gente fresca que não sabe como gastar dinheiro e acaba investindo em consultas para falar dos problemas do cotidiano para pessoas desconhecidas que nem conhecem as suas reais necessidades físicas e mentais?
As perguntas acima fazem parte da cultura de muitas pessoas moradoras das periferias e favelas que não conhecem ou não tem acesso ao serviço de um psicólogo ou psicanalista.
Ao entender que a pandemia iria gerar um grande passo para trás, devido ao encerramento de diversas políticas públicas que garantiram acesso a direitos sociais importantes para a população pobre brasileira, um grupo de moradoras das periferias, formado por psicólogas começou a refletir sobre os efeitos do ‘bolsonarismo’ e o modo do presidente Jair Bolsonaro enfrentar o coronavírus.
Esta motivação política levou a criação do PerifAnálise, coletivo formado por mulheres da quebrada que atendem moradores das periferias que desenvolveram problemas de saúde mental durante a pandemia de covid-19.
“A periferia é a que mais sofre com a ascensão do bolsonarismo, é nesse momento que a gente começa estudar psicanálise”, afirma Paula Jamele, psicóloga clínica que atua no PerifAnálise, coletivo de profissionais que oferecem atendimento terapêutico a moradores das periferias.
O PerifAnálise foi fundado em agosto de 2018, com o objetivo de cuidar do bem estar mental do moradores da periferia e democratizar a psicanálise. “A gente começou a construir a possibilidade de ter um dispositivo clínico, que pudesse estar próximo da periferia, já que a psicanálise é sempre tão centralizada, sempre tão distante da periferia, e que muitas vezes acaba acontecendo de uma forma nem tanto democrática, então no primeiro momento a gente pensa em construir um dispositivo clínico que a periferia pudesse acessar”, acrescenta Jamele.
Mesmo com uma ideia boa para ser colocada em prática, a chegada da pandemia impediu imediatamente os atendimentos presenciais, assim o grupo passa imigrar o contato com os pacientes para o ambiente online, outro desafio a ser enfrentado nesse momento turbulento de luta pela vida.
Ao firmar o compromisso de fazer atendimentos online, a psicóloga clínica afirma que o coletivo ganhou bastante visibilidade no Instagram, uma plataforma que atraiu muitas pessoas interessadas em conhecer mais sobre o PerifAnálise, fato que resultou inclusive no crescimento do projeto e geração de novas oportunidades.
Essa transformação no atendimento ao público exigiu do PerifAnálise uma adaptação ao cenário da escassez de recursos digitais que os moradores da periferia têm em plena era da quarta revolução industrial, puxada principalmente pelas novas tecnologias.
“Estou atendendo uma analisante que mora na periferia e desde o início ela me disse: ‘olha minha internet não tem um bom sinal’ e desde então, a gente faz análise por chamada de voz, e a gente vai pensando em outras possibilidades que a tecnologia permita”, relata Jamele.
Segundo a psicóloga, analisante é a pessoa que recebe o atendimento terapêutico e está na condição se passar por um processo de acompanhamento das suas necessidades de cuidado com a saúde mental.
Ela reforça que existe uma diferença entre o serviço de internet disponível no centro da cidade e na periferia. “O que é uma internet da periferia em comparação para uma região mais central? Tem isso, a gente foi percebendo ao longo do tempo é percebe até hoje”, aponta Jamele.
Com o atendimento reduzido a chama de voz, ou seja, sem ver a expressão facial do paciente, Jamele relata a importância do áudio e da escuta ativa da voz para acessar o subconsciente dos seus pacientes. “Uma presença por chamada de voz, ainda que não se possa ver a imagem um do outro é um elemento muito importante, porque a voz pra psicanálise vai dizer muito do aspecto inconsciente também”, explica.
Atenta ao diálogo com Jamele, a colega de profissão Emília da Silva, 30, moradora da Cidade Tiradentes ressalta que o atendimento online não é algo presente no cotidiano dos estudantes universitários. “Essa questão do online nunca foi muito abordada pelo menos na minha faculdade, eu sabia que existia, mas pouquíssimas pessoas faziam, já tinha ouvido ou lido algo sobre fora do Brasil, mas aqui no Brasil não”, conta ela, afirmando que já iniciei sua atuação profissional com o atendimento no ambiente digital.
A psicóloga Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo, problema essa questão da grade pedagógica e enfatiza que falta uma disciplina e estudos voltados para o atendimento online nas universidades.
As ferramentas tecnológicas utilizadas por Emilia para realizar o atendimento são aplicativos que os analisantes já estão familiarizados no seu cotidiano. “Eu costumo atender mais pelo whatsapp, pensando muito na memória do celular, e se for por alguma outra plataforma, como Google Meet ou Skype, vai da demanda do analisante, eu espero ele colocar essa procura pela facilidade”, descreve.
Ao trazer essa questão da flexibilidade de escolha de aplicativos para o atendimento, ela faz uma ponderação sobre o uso do whatsapp e a memória dos smartphones dos analisantes. “O whatsapp chega até ser impessoal em alguns momentos, mas eu espero da pessoa né, muitas pessoas não têm capacidade de baixar vários aplicativos e tem essa questão da memória do celular”, argumenta.
“Eu acho que o online é mais uma possibilidade”
Rosimeire Bussola
Rosimeire Bussola é moradora de São Mateus e integrante do PerifAnálise. Para ela, a experiência com atendimento online é atribuindo a uma nova maneira de se fazer psicanálise e torna-la mais acessível para o morador da quebrada.
“A gente vê que existe uma infinidade de outras possibilidades, eu acho que o online é mais uma possibilidade, tem muita gente já estudando, debatendo e conversando sobre essa ferramenta que gente chegou para ficar, e a gente consegue ver efeitos interessantes, tanto nos efeitos da clínica convencional, quanto em relação à estrutura física”, analisa.
Bussola entende a criação desse espaço online como uma ação emergencial, para que pessoas tenham um lugar para falar das suas dores. “Quando a gente se disponibilizou em ouvir as pessoas elas vieram e com a pandemia, além da gente inventar formas de poder atendê-las, essas pessoas também se reinventaram”, explica.
A visão solidária do morador da periferia, que busca de alguma forma ajudar o próximo a superar determinado problema é algo presente em uma das experiências de atendimentos online realizado por Rosimeire.
Pude perceber o quanto as pessoas davam importância para esse espaço de escuta, tive experiência de pegarem celulares emprestados pra poder sustentar a presença os atendimentos, e ouvi coisas do tipo: olha eu moro aqui na favela, então é muito barulho, vou precisar encontrar outro lugar”, confidencia a psicóloga, afirmando que esse relato aponta para as condições da vulnerabilidade social do indivíduo, mas aponta também para uma busca de solução para continuar contando suas questões no espaço terapêutico online.
Uma das coisas que torna os valores acessíveis no coletivo é a flexibilidade de preços na sessão, onde é adequado para cada morador, de acordo com suas condições econômicas no momento de buscar a terapia. “Isso que a gente faz de combinar com cada pessoa, com cada analisante de que ela possa pagar aquilo que ela consegue no momento”, diz Rosimeire, abordando que através desse questionamento ela busca durante as sessões trazer uma maior consciência sobre o valor do dinheiro. “Ao longo do acompanhamento das sessões, a própria pessoa vê quanto quer e quanto vai pagar inclusive isso acaba sendo o acompanhamento da própria análise, qual é a função do dinheiro para vida de cada pessoa”, acrescenta.
“Atendemos pessoas na laje, banheiro, praça, já atendi também na frente do ponto de ônibus”
Outro projeto que se propôs a oferecer um espaço de cuidado para a saúde mental da população preta e periférica é o Canto Baobá, iniciativa que oferece terapia com ênfase em questões raciais, gênero e orientação sexual. A clínica foi idealizada pelo psicólogo Douglas Felix, 36, antes da pandemia e hoje também utiliza o ambiente online para atender os analisantes.
“A gente foi ser perguntando quem era essas pessoas que estavam na clínica de psicologia e como esses psicólogos estavam recebendo mesmo, quando a gente começou a construir o projeto, nossa ideia sempre foi atender essa população periférica, porque a gente lembrou muito da nossa história”, relembra Felix, abordando como os motivos para criar a empresa.
Para o psicólogo que saiu do Parque Santo Antônio, na zona sul de São Paulo e foi morar na Bela Vista, região central, as sessões de terapia ficaram mais intensas nesse novo formato online. “Eu vejo que as sessões ficaram muito mais profundas, porque agora eles conseguem mostrar pra gente de uma forma mais concreta o que eles querem dizer, ou o que eles querem dizer”, analisa Felix.
Douglas entende o cenário no qual estamos vivendo torna a terapia um serviço essencial pra cuidar da saúde mental da população. “Essa pandemia fez a gente repensar novas formas de construir e ser psicólogo, de chegar a outros espaços, de levar a psicologia de uma forma diferente, ou até mesmo tirar esse estereótipo, essa forma que psicologia é só pra quem precisa, a gente vai vendo que a saúde mental tinha que ser muito mais trabalhada nas políticas públicas, pelos nossos governantes”, opina.
Um dos argumentos do psicólogo para tornar a terapia um serviço essencial ou uma política pública é a questão dos fatores sociais que causam as doenças invisíveis que atingem principalmente os moradores das periferias.
“Quando você pensa em uma doença quem vai somatizando no corpo, o quanto tem a haver com a história dessa pessoa, principalmente em pessoas periféricas né, ela não tem a escolha de fazer um home office, ela tem que ir lá fazer o trampo dela, então ela tem que ser colocar em risco, a gente vai pensando o quanto de outras violências estruturais foram acontecendo com essa pessoa”, reflete o psicólogo.
A psicóloga Ana Albuquerque, 29, é sócia de Felix na construção do Canto Baobá, conta que os atendimentos têm circulado em torno de temas e debates focado em desigualdades sociais. “A gente tem trabalhado falando muito do social e tentando aliviar culpas singulares que vão sendo internalizadas, o que é só mais uma estratégia das violências e opressões também”, explica.
De olho na mobilidade que as plataformas digitais oferecem, a psicóloga revela que tem realizado atendimentos nos locais mais diversos. “Atendemos as pessoas na laje, banheiro, praças, e já atendi também na frente do ponto de ônibus, onde dava pra encontrar ali um espaço, a gente foi tentando ter a criatividade e trazer essa pessoa, então vamos continuar pensando e criando o que dá para fazer”, conta Albuquerque.
Ela também morava na periferia, mais precisamente na Freguesia do Ó, região noroeste de São Paulo. A psicóloga revela mais uma vez são as desigualdades sociais são temas recorrentes nos atendimentos realizados por ela. “Muito da ansiedade vem de uma angústia, do eu não posso ficar em casa, eu vou pegar transporte, eu vou chegar do trabalho, eu vou faltar, eu moro com toda minha família, não tenho tantos cômodos aqui, é a ansiedade é despertada a partir do eu posso passar todo dia, posso transgredir todo dia, e a gente tem trabalhado muito isso, e a gente tem trabalhado muito para que essa culpabilização não seja singular.”
A psicóloga finaliza a entrevista falando do quão importante é se adaptar às condições de cada pessoa, pensando no acesso à internet, para ela ter acesso ao cuidado com a sua saúde mental. “Nem todo mundo tem um lugar pra fazer terapia com privacidade e a gente precisa pensar também como a internet não chega a todos os lugares?”, questiona ela, esclarecendo que fazer uma triagem dos analisantes é o ponto de partida para gerar uma inclusão social. “Hoje a gente pensa em um caminho de triagem, de entender a realidade de cada pessoa, e o fechamento do valor é individual, de acordo com cada realidade, cada história e com cada pessoa”, conclui.