Campanha quer garantir compra de pacote de dados 4G para 5.000 estudantes das periferias e favelas de todo o país, que estão se preparando para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Fazendo uma provocação sobre o direito à internet para estudantes de escolas públicas nas periferias, o movimento ‘4G para estudar’ surge por meio de uma rede de Cursinhos Populares que criaram uma plataforma de doações online, onde pessoas interessadas em contribuir podem doar um valor equivalente a um plano de pacote de dados 4G, que será entregue a um morador da quebrada que está se preparando para o ENEM e enfrentando dificuldades para dar andamento aos estudos, devido à má qualidade da internet nos territórios periféricos.
O movimento irá impactar estudantes de diversos contextos periféricos do Brasil, como alunos da rede pública de ensino nos estados de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Nesses estados, cursinhos populares atuam em diversas frentes, com o objetivo de garantir que jovens das periferias tenham uma experiência qualificada para se preparar para o ENEM, visando potencializar o número de moradores da quebrada que acessam o ensino superior.
Uma das iniciativas que compõem o movimento ‘4G para estudar’ é a Rede Ubuntu, coletivo de educação popular criado em 2013 por um grupo de educadores e estudantes universitários da zona sul de São Paulo. Segundo Rafael Cícero, coordenador pedagógico da rede Ubuntu, a participação de cursinhos de diversas regiões brasileiras é uma forma de garantir que o projeto de fato democratize a internet em vários cantos do país.
A estratégia que os cursinhos encontraram para distribuir a internet para os alunos foi de adquirir chips, comprar planos de dados, e para alunos que já tem chips, será entregue apenas o plano de dados mensal. A escolha da operadora para compra dos chips terá um mapeamento por região, verificando qual território tem maior qualidade de sinal é por consequência maior alcance.
Os cursinhos também pretendem arrecadar de maneira mensal fundos para impactar 5.000 mil alunos selecionados para receber os pacotes de dados. De acordo com Cícero, o movimento também quer chamar a atenção de empresas de telecomunicações para apoiar essa mobilização. “Para esse momento importante que o país está vivendo, precisamos cobrar as operadoras para que elas se disponibilizem e contribuam com esse debate”. Ele ressalta que a pandemia expôs a fragilidade do sistema público de educação. “Mesmo sem pandemia, os alunos aprendem muito pouco na escola, daquilo que o Enem e o vestibular cobra”.
Segundo a Anatel, somente na cidade de São Paulo, município onde a Rede Ubuntu atua, há mais de 24 milhões de celulares. Destes, sete milhões são utilizados no formato pré-pago e 17 milhões são utilizados como pós-pagos. A plataforma Telebrasil afirma que para atender essa demanda de usuários de smartphones há mais de sete mil antenas de celular espalhadas pela cidade. No mapeamento mais recente realizado pela Assossiação Brasileira de Telecomunicações, as antenas que distribuem o sinal de internet para celular estão concentradas em sua maioria na região central da capital paulista, ficando as periferias com uma taxa reduzida de cobertura de sinal.
Pensando na imensa desvantagem que seus alunos já enfrentavam antes da pandemia chegar às periferias e levando em consideração o quanto essa condição de vulnerabilidade aumentou, a Rede Ubuntu vem criando estratégias para ajudar seus alunos. “Muitos dos nossos alunos iam a biblioteca estudar durante a semana, iam até o céu, utilizavam o computador da biblioteca. Agora sem poder ir presencialmente nesses espaços, eles também sofrem mais por falta de condições estruturais para estar estudando”, explica o coordenador pedagógico.
Mesmo sabendo de todas essas desigualdades estruturantes que os alunos estão expostos, Um dos caminhos alternativos para manter a realização das aulas foi a oferta de conteúdos digitais didáticos para os alunos, seguindo o cronograma que já seria passado durante os encontros presenciais, que eram realizados sempre aos finais de semana.
“A gente aderiu ao Google sala de aula, depois começamos arquivar todo material de cursinho e formação de aula, onde os alunos têm acesso por meio de email e os canais deles, logo depois a gente começou oferecer vídeo aulas, por meio do Youtube”, relata Cícero, afirmando que as vídeo aulas podem ser acessadas a qualquer momento.
Percebendo que muitos alunos não estavam acessando o material por falta de internet, a Rede Ubuntu enxergou no movimento 4G para estudar uma forma de democratizar o acesso à internet para os alunos durante a preparação do ENEM.
“O benefício da internet é que eu posso pesquisar para não deixar passar em branco”
Gerontologia, nutrição ou medicina – essas são as três opções de curso que Caio dos Santos, 24, morador da periferia do Campo limpo, zona sul de São Paulo, pretende cursar com ajuda do Enem e com o apoio da Rede Ubuntu. Essas se tornaram suas motivações para se adaptar a nova rotina de estudo e organização durante a pandemia.
“Nesse meio tempo, bem no começo eu tava sem internet, então eu fiquei estudando só por meio de livros mesmo”, conta Santos, afirmando que os livros traziam muitas informações, porém não sanava todas suas dúvidas, e assim a falta de internet colaborava com um acesso limitado às informações, quando se remete a estudar para um prova que abrange todo conteúdo do ensino médio.
“O benefício da internet agora com qualquer dúvida que eu tenho, ou alguma dificuldade de entender o exercício, eu posso pesquisar pela internet para eu não deixar passar em branco, porque é o que acontecia muito. Eu estudava com livros e algumas coisas ficavam em branco e eu precisava anotar para sanar essas dúvidas com alguém ou em uma próxima tentativa de fazer os exercícios”, relembra o estudante.
Sobre suas perspectivas para o dia da prova que não está definido ainda, devido ao adiamento por causa da pandemia do coronavírus, Santos se diz confiante por ter mais tempo para estudar, estar usando bons hábitos de organização que vem praticando e procurando usar o tempo a seu favor.
“Teve uma semana que era para entregar as atividades e minha internet não queria funcionar”
Outro aluno da Rede Ubuntu é Ryan Roris, 17, morador do Jardim das Oliveiras, bairro localizado em Itapecerica da Serra. Durante a pandemia, o jovem divide sua rotina entre estudar para terminar o terceiro ano do ensino médio e se preparar para o Enem. Ambas as atividades necessitam de internet, porém ele vem de adaptando as oscilações de Inal para entregar suas atividades.
“Teve uma semana que era para entregar as atividades e minha internet não queria funcionar por nada. Eu tive que usar meus dados móveis para passar pro notebook”, conta o estudante, relatando o recente incidente de ficar sem internet para manter a rotina de estudos.
“E também to pesquisando alguns cursos on-line, mas não é nada certo porque eu tenho que ficar indo na casa da minha irmã, por conta do notebook, por que a internet lá é melhor, e assim tá dando pra continuar os estudos durante esse caos”, descreve Roris, relatando a importância do apoio familiar e do acesso ao notebook para realizar as atividades escolares.
Para além da internet de má qualidade, outro impacto negativo na rotina de estudos do aluno é a falta de concentração. “É bem difícil ter total concentração. Às vezes minha mãe me chama para fazer alguma coisa, às vezes as pessoas aqui de casa começam a falar e você acaba desconcentrando. Eu tento sempre manter o foco, por mais difícil que seja”.
Com poucas esperanças sobre o futuro nos estudos, Roris sabe que não é só seu esforço que basta. Para o estudante, ainda existe uma barreira chamada desigualdade. “Se a tecnologia tá avançada deveria não ser apenas para as pessoas que tem mais classe, que tem mais condições. E sim, também aqui na periferia, porque a minha condição não quer dizer que eu não possa chegar lá encima também, assim como alguém que tenha todos os recursos”.
Para continuar na luta por uma boa nota no Enem, Roris diz que busca forças nos ensinamentos e vivências dos seus pais. “Aqui em casa mesmo, a única que tem um diploma de faculdade é minha irmã. Meus pais sempre falam pra eu estudar e ter um diploma e uma vida boa sabe? Porque eles não completaram o ensino fundamental e eles não querem isso pra mim, querem um processo bem diferente do deles e melhor”, finaliza o estudante.