Escola humaniza o ensino de programação para jovens das periferias

Edição:
Ronaldo Matos

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A partir da leitura e vivência dos jovens das periferias e favelas de São Paulo, escola de programação pensada por moradores da quebrada tem como um dos seus diferenciais ensinar programação de maneira humanizada e não tecnicista.

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Victória usa o computador da mãe para ter melhor aproveitamento das aulas de programação (Foto: Murilo Roberto)

A Mais1code é uma escola de programação que vem trazendo novas metodologias pedagógicas e didáticas para adaptar as vivências de alunos quebrada ao ensino de linguagens de programação. Ensinar eles a codificar seus sonhos através de algoritmos é um dos principais propósitos da escola.

Uma das alunas da Mais1code é Victória Silva, 20, graduanda do sexto semestre do curso de moda. Ela é moradora de São Mateus, periferia da zona leste de São Paulo. Devido a pandemia, ela está com a família em Serrana, cidade do interior de São Paulo. Ela conheceu a Mais1code, por meio do curso de inglês da PLT4WAY, um projeto que oferece bolsa de estudos 100% gratuita para jovens e adultos da periferia, a cada três alunos pagantes.

“Eu tenho um projeto de ir pra Austrália em 2022, e trabalhar com programação é uma coisa que gera uma oportunidade no mundo todo né, como eu fico de olho nessas coisas de intercâmbio, principalmente na Austrália, é uma área que não precisa ter um inglês avançado, ai eu falei: é minha oportunidade de entrar em um país e já ter um emprego”, explica a estudante, afirmando que o domínio da linguagem de programação em sua vida poderia abrir portas para realizar seus projetos pessoais.

A estudante relata que no seu imaginário sobre o futuro nunca conseguiu incluir a possibilidade de ser uma profissional de programação. “Nunca imaginei que eu iria me interessar por isso”, comenta Victória, ressaltando que existe uma distância entre a linguagem computacional e as vivências de uma jovem da periferia.

Esse cenário só mudou quando ela visualizou uma comunicação que falou diretamente com ela e seus sonhos. “Quando a mais1code lançou a proposta eles colocaram: ‘a primeira mulher programadora’. Isso foi uma chamada muito forte também, incentivando jovens da quebrada, principalmente mulheres, a entrar nesse ramo. Eu falei: ‘wow’, realmente isso é pra mim! aí foi que se concretizou todo o interesse”.

A Mais1code tem uma metodologia de ensino chamada ‘Peer to Peer’, que significa um para um, onde aluno terá acesso a um professor voluntário, para realizar uma ou duas aulas por semana e suporte diário da equipe da escola de programação.

Os jovens interessados podem fazer o cadastro gratuitamente através do site para participar de formações focadas em linguagens de programação, banco de dados e design.

“Programar abri um universo né”, ressalta a estudante, abordando que um dos maiores diferenciais que contribuíram para ela expandir seu universo de conhecimento sobre tecnologias mais complexas, foi a metodologia de ensino, onde ter um mentor particular auxiliou na melhor compreensão dos termos e diminuiu suas dificuldades.

“Às vezes a gente fica duas horas e ainda é pouco, porque é muita coisa, um mentor para cada pessoa é maravilhoso, porque ele te dá total atenção”

Durante o processo de aprendizagem, uma das principais barreiras encontradas por Victória é a compreensão de termos técnicos que ela não está muito acostumada no seu cotidiano. “Minha maior dificuldade é gravar né, absorver todos os códigos, tem alguns que eu já fui absorvendo porque uso muito”, diz a estudante.

Ela acredita que neste aspecto do processo de aprendizado, a didática que seu mentor formulou para ela abriu caminhos estratégicos para que ela consiga desvendar a linguagem computacional. “Praticamente tudo é em inglês, só que o Gabriel sempre traduz pra mim, e é mais fácil de gravar conforme a gente vai usando”.

“Você olha para um site, e você não imagina que tudo aquilo são números, códigos, e forma uma site”, compra ela, após colocar em prática algumas técnicas vivenciadas em aula. “Através de números eu fiz meu primeiro site, bem simplesinho, mas você olha assim, é um site”, descreve Victória.

Todos os projetos pensado por ela ao longo do curso são voltados para uma das suas paixões: a moda, e assim já pensa em prototipar e programar seu próprio e-commerce.

Embora a moradora de São Mateus já esteja pensando em formas de conectar sua profissão com a sua paixão pela moda, o acesso a equipamentos como um notebook de qualidade ainda é um impedimento para ela sonhar cada vez mais alto.

Hoje, ela utiliza o notebook da sua mãe, que está morando no interior de São Paulo durante a pandemia. Por conta das dificuldades para acessar um computador com boas configurações, Victória relembra que teve muitas dificuldades para baixar alguns programas essenciais para usar no curso de programação. “Não tava conseguindo baixar alguns programas e eu fiquei mais ou menos duas semana sem ter aulas”, conta.

Diante deste cenário, Victória se preocupa também com o momento relativo ao final da pandemia, quando ela voltará para sua quebrada. “Quando eu voltar pra São Paulo eu não sei como eu vou fazer”, afirma ela, fazendo uma referência a dificuldade de acesso a um bom computador para auxiliar nos estudos. 

“Uma programação com linguagem de quebrada é uma linguagem humanizada”

por  Diogo Bezerra

Um mês foi o tempo necessário para os fundadores da escola de programação Mais1code Diogo Bezerra, 27, morador do Jardim Brasil, localizado na periferia da zona leste e Tauan Matos, 26, morador do Tucuruvi, zona norte, tirar sua ideia do papel, elaborar e dar forma a escola de programação, que atualmente tem 24 mentores e 24 alunos. Em outubro, o projeto abrirá novas turmas para expandir sua rede de jovens atendidos.

A ideia de construir uma escola de programação voltada para alunos da quebrada e que se comunique com a quebrada surgiu a partir de uma inquietação de Diogo Bezerra, criador da PLT4WAY, onde estuda Victória. Ele presenciou o interesse de um jovem da sua rede de alunos pedir referências de cursos de programação. Após esse momento, ele passou a pesquisar e entender que a pedagogia e a cultura de ensino dos cursos de programação não dialogava com a cultura de um jovem da periferia.

“Eu fui atrás pra saber se havia alguma coisa e só encontrei nos grandes centros”, conta Bezerra, afirmando que a partir deste momento ele entendeu que o conhecimento de programação ainda não estava disseminado em sua quebrada e em tantas outras. “Eu não acredito que é pra nós, não tem nem comunicação pra nós aqui, querendo chegar até nós”.

A partir dessa inquietação de não pertencimento de um jovem de quebrada na área de tecnologia, ele juntou com outros amigos e sócios e resolveram criar sua própria escola de programação, onde a comunicação é voltada para seus alunos, a partir da suas próprias vivências. “Nós somos o nosso público alvo entendeu, isso facilita muito na comunicação, no jeito que nós falamos”.

Mesmo com a promissora ideia da escola de programação Mais1code prometendo transformar a vida de muitos jovens nas periferias e favelas, os empreendedores que a criaram relatam que uma das suas maiores dificuldades é a falta de acesso dos alunos à infraestrutura, como acesso à internet e notebook.

“Nós temos aí jovens que não tem condições, tem jovens que às vezes tem internet, mas não tem computador, aí é outro processo que trabalhamos aqui na Mais1code, pra ajudar esse jovem”, explica Tauan, citando que umas das medidas tomadas pela equipe, visando que os alunos não fiquem sem aula pela falta de equipamento, é a articulação de doações de notebook, porém devido a pandemia essas doações tornaram-se ainda mais difíceis. “Esse momento é um pouco complicado, porque tira a oportunidade desse jovem que não tem internet nem computador”.

A preocupação que os fundadores tiveram para trazer acessibilidade de equipamentos para o aluno assistir a aula é a mesma em relação ao processo de aprendizagem, onde eles conseguiram entender que ter apenas um mentor seria o melhor caminho para ampliar o desenvolvimento e a compreensão dos termos técnicos entre os alunos.

“Facilita muito o desenvolvimento dele e a chance de aprender, o que faz ele se identificar muito mais rápido, do que se tivesse num grupo de pessoas de diferentes níveis. Ele ou ela ficaria frustrado por ta nessa área e não conseguir aprender no mesmo nível que o amiguinho”, acredita Diogo, um dos fundadores do projeto.

Para a dupla de amigos e empreendedores que criaram a Mais1code, a metodologia de ensino da cursos de programação precisa ter uma linguagem que possibilita uma leitura de quebrada que eles se identifiquem. “Uma programação com linguagem de quebrada é uma linguagem humanizada”.

Para eles, a leitura do pensamento computacional de quebrada pode fazer com que esses alunos das periferias e favelas decodifique melhor os espaços territoriais onde convivem através deste tipo de conhecimento.

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