“Os conteúdos se recuperam, mas as vidas não”, diz professora em greve

Edição:
Redação

Leia também:

O Desenrola entrevistou uma integrante do movimento de greve de educadores, que é formado por professores da rede estadual e municipal de ensino de São Paulo. 

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.


Projeção realizada paraa sensibilizar a população sobre a importância da greve de professores. (Imagem: Projetemos)

O governo de São Paulo anunciou nesta quarta-feira (03), que a partir deste sábado (06) de março, o estado entra na fase vermelha, onde o protocolo de isolamento social para contenção da covid-19 exige que bares, restaurantes e comércios não essenciais permaneçam fechados durante 14 dias. A medida aponta também que na fase vermelha, aonde a pandemia alcança os maiores indicadores de mortalidade, a escolas públicas estaduais continuem com suas atividades e seguindo os protocolos sanitários para atendimento dos alunos.

Na contramão dessa medida que autoriza o funcionamento das escolas, um movimento de professores em greve segue engajado em orientar pais, alunos e a comunidade escolar sobre o impacto das informações que o poder público não divulga sobre os malefícios do retorno às aulas presenciais em suas campanhas de conscientização sobre a covid-19.

A iniciativa conta com a participação ativa de professores da rede estadual e municipal de educação pública de São Paulo, que estão unidos para defender o direito à vida das famílias que tem seus filhos matriculados em escolas localizadas em territórios periféricos da cidade.

O Desenrola conversou com Lúcia Guimarães, professora da rede pública municipal de educação. Ela descreve com detalhes como as condições estruturais das escolas públicas estão contribuindo para que esse movimento de greve se junte para difundir informações, que podem evitar um colapso ainda maior da pandemia nos territórios periféricos.

“Os conteúdos se recuperam, mas as vidas não”

A educadora inicia a entrevista enfatizando que os conteúdos se recuperam, mas as vidas não voltam mais e demonstra conhecimento sobre a condição socioeconômica das famílias que precisam enviar os filhos à escola, mesmo diante da pandemia. “Sabemos e entendemos os problemas das famílias, que é muito delicado o aluno não estar indo a escola, inclusive em relação à segurança alimentar, mas a gente entende que os conteúdos se recuperam, mas as vidas não”.

Guimarães lembra que a questão da segurança alimentar poderia ter sido resolvida pela administração municipal em 2020 se eles assim quisessem. “Nós não vimos durante 2020 uma política séria tanto para a questão da segurança alimentar, quanto para garantir que as crianças tivessem acesso ao ensino remoto, que seriam as duas questões que poderia amenizar os problemas da escola fechada”, explica.

O movimento de greve dos professores entende que devido ao aumento no número de mortes e com o surgimento de novas variantes da covid-19, esse é um momento inadequado para a volta às aulas.

“A nossa greve não é baseada na ideia de que não queremos trabalhar, como algumas pessoas dizem. A gente quer sim fazer o ensino remoto e que todas as crianças tenham acesso a esse ensino, que são as condições que nós temos nesse momento”, afirma a educadora.

Descaso do poder público 

Uma das indignações do movimento de greve dos professores é com o descaso que o governo prolifera ao não levar em consideração o diálogo com a comunidade escolar para tomar decisões mais assertivas, que não ofereçam um risco direto à vida das famílias de alunos e dos educadores. “Eu penso que o governo ignora o diálogo com a comunidade escolar como um todo, tanto os representantes professores, como representantes da comunidade local. Eles tomam medidas sem conhecer a realidade específica de cada unidade”, conta.

Ela denuncia que em meio à pandemia, o quadro de funcionários de limpeza de diversas escolas foi reduzido. “As unidades escolares tiveram redução de funcionários da limpeza, num momento que a limpeza é um dos itens primordiais para a questão da segurança, enfim, a gente não entende bem qual é a motivação”.

Ao descrever a infraestrutura das escolas públicas, tanto do ensino fundamental, quanto no estadual, a professora faz uma alerta para as famílias. “A grande maioria das escolas são gradeadas, estão com janelas emperradas e não há circulação de ar adequado, são ambientes fechados, nós entendemos que esse ambiente não é seguro para uma volta às aulas, além disso, nós estamos com uma vacinação indo a passos lentos, porque nós só iremos conter a pandemia quanto tivermos vacinado um número muito grande de pessoas”.

Ao avaliar qual o papel dos professores nesse momento da história da humanidade, a professora enfatiza que os professores deveriam estar inseridos no grupo prioritário para vacinação. “Nós sabemos que grande parte das escolas que reabriram estão fechando, porque as pessoas estão se contaminando, é uma situação bastante delicada”, descreve.

Qualidade do ensino 

Outro fator que tem motivado a greve de professores é a qualidade do ensino oferecido pelas escolas nesse processo de reabertura com distanciamento social. “Essa é uma escola emergencial. Ela coletiviza o ensino e não permite o cuidado individual com os alunos. Nós não podemos considerar que essa aprendizagem com distanciamento social seja a escola que a gente vislumbra e precisa. Então é difícil para os profissionais, crianças e adolescentes essa nova escola”.

O processo pedagógico, responsável por transmitir o conhecimento aos alunos também foi criticado, pelo fato dele se basear apenas em passar conteúdos na lousa e não permitir um contato mais humano com os alunos. “Há uma visão da educação que é conteudista, que eu posso passar mais e mais conteúdos, mas nós não entendemos assim. Nós entendemos que a educação é uma coisa pra vida, que tem relações, que a gente precisa estar em grupo, nós precisamos fazer junto, e é isso que a escola nesses moldes não vai nos oferecer”, analisa.

Saúde mental 

Para o movimento de greve dos professores, o assunto volta às aulas não faz sentido, pois segundo Guimarães, com a vida não se faz teste. “Se a gente não sabe, se a gente está em dúvida, é melhor não reabrir, já que a gente não tem certeza de tudo que está ocorrendo nesse espaço”.

Preocupada com a saúde mental dos professores, alunos e familiares e toda comunidade escolar, a professora se questiona se o Estado está levando em consideração que a escola pode gerar novas doenças para além da covid-19. “A gente vê que virou uma queda de braço. O governo acha que temos que abrir, mas a qual custo? Será que a criança que vai pra escola e que pode levar o vírus pra casa e tem um ente querido que possa adoecer e até morrer, isso não vai causar problemas psíquicos para essas crianças?”

Ela complementa afirmando que a maioria das famílias que têm filhos em escolas públicas nas periferias já perdeu um ente querido nessa pandemia e que o poder público parece não levar isso em consideração. “Eu acho que nós não precisamos ajudar a aumentar esse número de mortes. Eu volto a dizer que é papel do governo dar a garantia ao ensino remeto e dar a garantia de segurança alimentar para essas crianças. É isso que o Estado brasileiro não está conseguindo, mesmo na cidade de São Paulo, que tem o maior orçamento público entre as cidades brasileiras”.

Dinheiro público 

O Desenrola apurou que em 2019, ano que antecedeu o início da pandemia, a cidade de São Paulo arrecadou 60,1 bilhões nos cofres públicos, se tornando o quinta maior município em arrecadação pública do Brasil. Esse valor poderia ser utilizado para investir em diversas políticas públicas em 2020, no entanto, com o advento da pandemia, muitas prioridades do governo foram invertidas, como vem afirmando o movimento de greve dos professores.

Vale ressaltar que os dados apurados mostram que a cidade de São Paulo teve a quinta maior arrecadação pública em 2019, ficando atrás somente da União, Estado de São Paulo, Estado de Minas Gerais e Estado do Rio de Janeiro, ou seja, é a única cidade a ter um orçamento aproximado dos estados.

A professora finaliza a entrevista, enfatizando que o diálogo com as famílias e com a comunidade está muito difícil nesse momento. Ela acredita que a escola tem muito a conversar com o país.

“Nós estamos passando por um momento de negacionista e de descrédito do conhecimento. E eu acho que a escola tem um lugar importante de diálogo, porque a escola é o lugar de desenvolvimento de conhecimento, do diálogo, para discutir e falar sobre as várias possibilidades e pontos de vistas, então eu penso que nós precisamos sim, enquanto educadores, pensarmos como nós vamos reativar esse diálogo com as famílias e a comunidade escolar no território, porque sem diálogo, nós não iremos ver esse país da forma que a gente gostaria que garantisse justiça, que tenha as mínimas condições de vida para todos”, conclui.

Autor

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.