“Mandei mais de 30 currículos”: a saga de jovens para trabalhar com audiovisual na quebrada

Edição:
Redação

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Escassez de oportunidades de trabalho impede que jovens das periferias ocupem espaço no mercado de trabalho da produção audiovisual, aumentando ainda mais a incerteza sobre o futuro como profissionais na área. 

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Raul Dantas, Igor Vasco e Gabriela Navarro, contam como é tentar viver do audiovisual em meio a desvalorização da cultura.Foto/Montagem: Mateus Fernandes

A criatividade sempre foi muito um elemento importante na vida de Raul Dantas, 24, morador de Embu das Artes, município da região metropolitana de São Paulo, mas nem sempre as oportunidades de trabalho surgiram por conta desse diferencial. Ele é um desses jovens, morador de quebrada, que deseja viver de arte e cultura, especificamente do audiovisual.

Na trajetória de Raul não faltaram tentativas para conseguir pelo menos uma entrevista de emprego. “Tem quem consegue, mas eu por exemplo, após concluir o curso eu tenho certeza que mandei mais de 30 currículos por e-mail. Só tive duas respostas dizendo “obrigado por ter mandado”, no máximo. Então rola isso mesmo”, relata o jovem.

Raul possui 24 anos e mora em Embu das Artes. Foto: Mateus Fernandes.

Raul é formado em técnico de produção audiovisual pela Etec Jornalista Roberto Marinho, um dos principais equipamentos públicos acessíveis para jovens das periferias para ter acesso a esse tipo de curso de forma gratuita.

Para complementar a sua formação, Raul chegou a iniciar um curso técnico em processos fotográficos, porém precisou trancar devido aos protocolos de isolamento social da pandemia de covid-19.

Raul durante a produção de seu TCC. Foto: Arquivo Pessoal.

A maior experiência dele na área, foi durante a realização do seu trabalho de conclusão de curso, na qual, o jovem atuou como diretor. Após a formação, Raul vem tentando submeter projetos para o PROAC – Programa de Ação Cultural, programa de investimento em projetos culturais através de editais, como alternativa para obter recursos para investir em seus projetos independentes.

“Ano passado eu escrevi um argumento, fiz todo um projeto para um edital do PROAC. Reuni toda uma equipe, pegou o documento de todo mundo, fiz todas as etapas do projeto e submeti pro PROAC, só que não passou. Mas foi bom que teve uma nota”,

conta Raul.

Embora seja formado em curso técnico na área e busque se inserir no campo da produção de áudio e vídeo, o jovem ainda não consegue viver apenas com o audiovisual e atualmente trabalha com atendimento em um call center.

“O principal interesse, meu e da minha família, é que eu faça alguma coisa da vida. Meu primeiro trabalho foi telemarketing, o segundo de formalização de contrato de banco, depois eu vendi bolo na rua, fiz entrega”, compartilha o jovem, que não esconde a sua disposição para gerar renda e trabalho, independente da profissão exercida”.

Contexto 

Em julho deste ano, foi notícia em jornais e muito discutido nas redes sociais a imagem da Cinemateca de São Paulo em chamas. A possibilidade de incêndio já havia sido alertada, porém, nada foi feito. Tal imagem foi apenas mais uma demonstração de como o governo vem ignorando a importância do audiovisual para preservação da memória e cultura do país.

Em contrapartida, temos nas periferias movimentos que seguem fortalecendo diversos campos que cotidianamente são atacados pelo Estado, entre eles, jovens que ainda sonham em viver da cultura e mudar esse contexto de desmonte das políticas públicas que apoiam a produção audiovisual.


Documentaristas da quebrada refletem sobre a importância da preservação do audiovisual periférico

Para os documentaristas Sidnei Junior e Rosa Caldeira, a Cinemateca tem potencial para expandir e se reinventar, mas ainda é um espaço elitizado que não contempla as produções periféricas.


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Raul afirma que faltam incentivos ao cinema no Brasil, leis e políticas públicas que fomentem a área. “Até os anos 2000, você basicamente não tinha políticas públicas de incentivo à cultura audiovisual. E aí chega a ANCINE, diversas leis de incentivo e tal e você tem um novo florescer do cinema nacional, só que, enfim, existem diversos ataques a esse tipo de política pública. Porque um povo culturalmente desenvolvido é um povo que escolhe por si”, afirma.

Os ataques citados por Raul se mostram visíveis de diversas formas: Segundo a Sindcine, Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica e do Audiovisual, a ANCINE – Agência Nacional do Cinema, não libera as verbas totais que deveriam ir ao FSA, Fundo Setorial do Audiovisual, desde 2018, e mesmo assim o acesso aos serviços prestados pela agência, ainda não chegam de forma efetiva para quem produz nas periferias.

Em 2020, o governo propôs um projeto que corta 43% do orçamento destinado ao audiovisual. É o menor valor do orçamento desde 2012. E o cenário não melhora quando se trata de incentivos diretos a produtores audiovisuais periféricos, que nem sempre conseguem acessar recursos públicos para suas produções.

Outra questão que Raul aponta, é o acesso a equipamentos para as produções. Ele relata que durante o curso técnico havia a possibilidade de pegar equipamentos para gravar na própria escola e também fazer contatos, algo muito importante na área, no seu caso, ajudando ao acesso a equipamentos.” E nisso você acaba conhecendo que tem equipamentos, câmera, microfone, etc”, coloca.

A câmera com que Raul aparece nas fotos acima, por exemplo, é do seu irmão, que também acaba ajudando nesse acesso. “Eu edito no computador dele também, porque se eu tentar abrir um première (programa de edição) no meu computador, ele deve pegar fogo”, relata.

O jovem trabalha desde o fim do ensino médio e relata que procura fazer o que gosta, mas sempre procura estar trabalhando, mesmo que em áreas distintas enquanto as oportunidades não chegam. “Hoje eu estou trabalhando com atendimento prefiro assim do que com entregas, principalmente porque é CLT”, afirma o estudante.

No momento, Raul está se preparando para participar de um novo vestibular, em busca de obter uma formação superior, para se candidatar a vagas de emprego com melhores condições de trabalho. “Até eu ter uma formação superior eu não vou conseguir trampos que não sejam a base da pirâmide mesmo. Para trocar 6 por meia dúzia, sair de um call center pra ir pra outro, eu prefiro manter, até surgir uma outra oportunidade de algo melhor”.

Para o futuro, o jovem espera alcançar seu real objetivo: atuar com produção de filmes. “Meu objetivo principal é realmente a criação de filmes e projetos audiovisuais”, finaliza.

Acesso ao ensino e educação

Gabriela, 20 anos, é moradora de Barueri.

Atualmente, Gabriela Navarro, 20, moradora de Barueri, na região metropolitana de São Paulo, atua como como editora de vídeo em uma empresa de mídia digital independente. Assim como Raul, a jovem diz que pensou em fazer projetos independentes, porém desde o início da pandemia se sente desanimada, sem ânimo de levar a ideia adiante.

Ela conta que começou no atual emprego este ano e todo o processo foi à distância, desde entrevista até o recebimento de equipamentos e documentos. “Montei o meu home office no meu quarto e é muito estranho pra mim que o meu local de trabalho seja o mesmo local do meu descanso/lazer”, aponta.

A jovem também conta que o apoio da família não veio no início e que através de incentivos e políticas públicas, como o Prouni, programa que garante bolsas parciais ou integrais em universidades privadas para estudantes com baixa renda, que foi possível chegar na universidade e trabalhar com o que gosta.

“Quando decidi que gostaria de trabalhar com audiovisual, de primeira meus pais não quiseram me apoiar, pois para eles não era uma área rentável. Sinto que o que posso considerar apoio é o Prouni que me possibilitou a formação em Produção Audiovisual”,

conta Gabriela, que também revela pensar mais alto para o futuro, pois segundo ela, o mercado de trabalho continua restrito

Gabriela em home office. Foto: Mateus Fernandes

Atualmente Gabriela trabalha em uma empresa independente e pretende continuar na área. “Hoje minha expectativa e vontade é continuar editando, chegar num patamar e num lugar que as pessoas confiem nas minhas ideias, se destacar a ponto de ter mais liberdade criativa”, diz.

A jovem conta que a empresa que trabalha fornece computador, e que de equipamento pessoal tem um headphone e um notebook que comprou com o dinheiro que juntou do seu primeiro salário. Segundo ela, os equipamentos são suficientes para trabalhos não tão grandes, mas enfrenta dificuldade quando precisa trabalhar com arquivos muito pesados.

“O que eu sinto falta hoje para trabalhar sem dúvidas seria um computador mais potente e acho essencial para quem trabalha sentado em frente a uma tela o dia todo uma boa cadeira, um monitor grande e de boa qualidade e um espaço específico para trabalhar. Com o salário que a gente recebe, tendo que pagar contas, fica insustentável, sabe? Se endividar para comprar um equipamento melhor”,

afiram Gabriela.

Diferente de Gabriela, Igor Vasco, 21, trabalha como freelancer e tem uma perspectiva de incertezas para o futuro na área.

Igor Vasco nasceu e mora até hoje na cidade de Francisco Morato, também na região metropolitana de São Paulo, e estudou técnico em Produção Audiovisual. Hoje ele trabalha com edição e fotografia de maneira freelancer e além disso, participa de uma produtora independente, focada na produção de videoclipes musicais, a ProdPa.

Igor Vasco editando no seu notebook, no CCSP – Centro Cultural São Paulo . Foto: Mateus Fernandes.

O jovem conta que começou a editar no seu notebook, mas devido às limitações do aparelho, precisou comprar um computador melhor com seu próprio salário dos primeiros meses de emprego.

“Acho que umas das coisas que fez eu conseguir o trabalho foi justamente eu ter o computador que suportasse, porque senão nem conseguia. E aí ao longo do trabalho eu fui juntando dinheiro porque eu passava muito sufoco com esse notebook”,

conta Igor

Sobre suas expectativas com o mercado de trabalho, Igor aponta diversas incertezas: “Acho que tudo vai depender do que acontecer no ano que vem, é bem nebuloso. Então acho que tem duas perspectivas: ou o Bolsonaro vai cair e aí com o tempo as coisas vão voltar ao normal ou ele vai continuar e talvez faça a gente da área audiovisual sejamos bastante prejudicados”, analisa Igor.

Igor possui 21 anos e atualmente trabalha no formato freelancer.

Uma das experiências em direção do jovem foi com o curta “Goma”, dirigido por Igor como trabalho de conclusão do seu curso e que foi feito por estudantes de maneira totalmente independente. O curta conta as dificuldades de um artista negro e gay dentro do ambiente das batalhas de rima. Atualmente, o curta concorre a festivais e ganhou menção honrosa em Atlanta, nos Estados Unidos.

Apesar da aprovação internacional, Igor relata que aqui na região sudeste o filme foi aprovado somente em um festival. Há uma crescente ideologia de impedir a exibição, distribuição e divulgação de projetos com a temática como “Goma”. Em agosto de 2019, a Ancine suspendeu um edital para séries que seriam exibidas na TV pública, cujos projetos pré-selecionados incluíam temáticas raciais e LGBTs. 

Foto dos bastidores de “Goma”, em que Igor atuou como diretor. Foto: Arquivo Pessoal.

Para um mercado audiovisual mais fortalecido, também é preciso pensar e fomentar ações e profissionais que estão nas periferias, o que pode significar mais empregos na área e menos desemprego no país, contribuindo com milhares de pessoas, como Raul, Gabriela e Igor.

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