Vítima de violência física na Estação Campo Limpo, Débora Paredes dos Anjos, de 39 anos, foi agredida por um passageiro após utilizar o banheiro do terminal de ônibus. Ela espera que a ViaMobilidade se responsabilize pelo caso.
Dois anos atrás, no dia 17 de julho de 2020, a assistente social, Débora Paredes dos Anjos, de 39 anos, estava retornando do trabalho na Prefeitura de Embu das Artes, da qual é funcionária há aproximadamente uma década. No trajeto, ela estava se dirigindo ao Shopping Campo Limpo, onde tinha um compromisso, quando foi agredida por um passageiro da linha 5 Lilás, após utilizar o banheiro público do terminal de ônibus integrado ao Metrô Campo Limpo, por volta das 15h25.
“Inicialmente, ele achou que eu era um homem”, relembra Débora, descrevendo uma das motivações que levaram um usuário do metrô a praticar violência verbal e física contra ela. O atentado contra a assistente social gerou uma série de lesões que afetaram principalmente o seu rosto, onde recebeu uma série de socos, resultando em seis pontos cirúrgicos, para conter o sangramento dos cortes gerados pela agressão.
O fato ocorrido com Débora não é um caso isolado. Em abril deste ano, uma jovem de 21 anos, negra, lésbica e periférica ― chamada Julia Mendes, integrante do Coletivo Máfia das Minas, também foi violentada no metrô, desta vez na estação de Sapopemba. Ela foi abordada por seguranças que a agrediram após ter entrado no banheiro e ter sido confundida com um homem por uma das funcionárias do local.
De acordo com os dados da última pesquisa Viver em São Paulo: Direitos LGBTQI+, divulgada pela Rede Nossa São Paulo em junho do ano passado, 59% da população da capital paulista já sofreu ou presenciou uma situação de preconceito em função da orientação sexual ou identidade de gênero, o que representa mais de 6 milhões de paulistanos.
Segundo a pesquisa, espaços públicos são os locais de maior vulnerabilidade para a população LGBTQIA+, especialmente os transportes, nos quais 4 a cada 10 entrevistados declararam ter presenciado ou sofrido alguma situação de LGBTIfobia. Nos banheiros públicos e privados este número diminui para 3 a cada 10 entrevistados.
Em nota, emitida ao Desenrola, a ViaMobilidade informou que já tinha conhecimento do ocorrido e que os agentes de segurança da concessionária são constantemente treinados para identificar e coibir ocorrências desta natureza, bem como para realizar o acolhimento à vítima, prestação de primeiros socorros e, se preciso, direcionamento ao médico ou à delegacia.
Eles informam, ainda, que os agentes teriam oferecido encaminhamento ao hospital, auxílio e condução para que os envolvidos registrassem a ocorrência na polícia, mas ambas as sugestões foram recusadas, tanto pela vítima quanto pelo agressor. Débora desmente ter negado o encaminhamento e afirma que os seguranças insistiram que prestar queixa, naquele momento, seria inviável.
Perguntamos à ViaMobilidade desde quando os agentes possuem treinamento para interferir em casos de violência e com qual frequência essas formações acontecem, mas não obtivemos respostas. Eles também não informaram se realizam algum acompanhamento ou assistência à vítima, após as agressões, tampouco de qual maneira essas queixas são registradas.
Desde agosto de 2021, o estado de São Paulo possui uma delegacia online especializada em LGBTIfobia, chamada Delegacia da Diversidade, criada para combater crimes de discriminação e intolerância de forma remota, sem que as vítimas precisem se deslocar até um espaço físico.
Em resposta a nossa reportagem, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que, além da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, criada em 2018, na capital paulista, todas as delegacias do estado possuem protocolos de atendimento específico para a população LGBTQIA+. Além disso, desde 2020, as Delegacias de Defesa à Mulher passaram a atender com base no gênero e não no sexo biológico da vítima, estimulando mulheres trans e travestis à prestarem queixa.
O caminho da violência
A caminho do sanitário do terminal de ônibus integrado ao Metrô Campo Limpo, Débora reparou que havia um rapaz lhe xingando. Como estava muito apertada, ela se dirigiu imediatamente ao banheiro e, na sequência, perguntou ao jovem porque estava se referindo a ela daquela maneira. Ao ser questionado, ele desferiu um chute na perna esquerda da assistente social que, ao tentar se defender, foi agredida com diversos socos no rosto.
Caída no chão, Débora gritava por socorro, enquanto uma passageira que acompanhava o agressor pedia repetidamente para que ele parasse. A vítima, uma mulher negra de 1,89cm ― que se identifica como lésbica ― declara que estava completamente agasalhada naquele data, o que, provavelmente, teria levado o agressor a confundi-la com um homem.
“Ele se sentiu muito à vontade para me agredir quando percebeu que eu era mulher, porque a companheira dele gritava, a todo instante, ‘para Gabriel, ela é uma mulher, para que ela é uma mulher’ e, a cada vez que ela gritava, ele me batia com mais força. Eu pensava: ‘mano, para de falar que eu sou mulher, ele tá me batendo pra cacete'”, descreve a vítima.
Gabriel, como é chamado o agressor que não foi entrevistado pela nossa reportagem, teve tempo suficiente para golpear o rosto da vítima diversas vezes antes que algum funcionário da estação interferisse. De acordo com ela, os seguranças da ViaMobilidade, concessionária responsável pela manutenção e operação da linha 5 Lilás do metrô, agiram com muita lentidão porque também teriam a confundido com um homem.
“Os trabalhadores do metrô, a segurança do metrô, esperaram ele me agredir muito porque ao olhar deles eu era um homem. Eles não me identificaram como uma mulher lésbica, acharam que era um briga entre dois homens. E eu estava no chão tentando me defender, gritando por socorro”, comenta a assistente social.
Quando o agressor foi finalmente interrompido pelos agentes, o rosto da vítima sangrava muito. Ela declara que, dentre todos os funcionários responsáveis pela vigilância da estação, somente um foi sensível o suficiente para lhe fazer um curativo. Ainda muito transtornada, ela teria exigido para ser encaminhada à delegacia junto ao agressor, mas os seguranças tentaram convencê-la do contrário.
Após muita insistência e com o rosto ainda sangrando, Débora foi aconselhada a ir, primeiro, ao médico ― ao qual se dirigiu por conta própria ― enquanto o agressor saiu de lá escoltado pelos seguranças. Desde então, a vítima não teve mais nenhuma notícia de Gabriel. “Foi como se nada tivesse acontecido”, declara a assistente social que recebeu seis pontos no rosto.
Pandemia e o isolamento social pela lesbofobia
Débora foi agredida quando retornava do serviço, pouco menos de cinco meses após o primeiro caso de coronavírus ser notificado no país. Naquele dia, 17 de julho de 2020, 1.123 óbitos foram registrados por Covid-19 no Brasil. Enquanto muitas pessoas estavam apavoradas e com medo de sair de casa por conta do vírus; para ela, este medo se somava ao de ser novamente violentada.
“Eu fiquei muito tempo sem sair de casa. Eu sou uma mulher que mora sozinha e nesse período de pandemia eu estive só e estar só demandava que eu, por conta própria, saísse para comprar minha comida, minha alimentação, para pagar minhas contas. Como você sai para cumprir com as suas necessidades básicas, porque isso é básico, com medo da pandemia e da violência?”
questiona a assistente social.
Sem condições emocionais ou psicológicas para sair de casa, Débora ficou sem frequentar o serviço por dois meses e teve que responder por um processo administrativo porque o médico do trabalho, responsável por afastá-la, alegou que o atestado médico da vítima era falso, pois ela não tinha nenhuma marca da violência no rosto.
“Foram seis pontos e eu fiz um cuidado pleno. Cuidei muito para que não ficasse a marca, para que eu não me olhasse no espelho e visse essa violência constantemente. E aí, dentro desse cuidado, no qual eu preservei muito esse machucado, o médico questionou por que eu não fiquei com marca. Ele queria ver uma marca de violência”, explica a vítima.
Àquela altura, Débora ainda não tinha realizado o boletim de ocorrência, porque precisaria ir à Delegacia de Polícia Metropolitana e, para isso, teria que voltar à estação na qual foi agredida. “Eu tinha que ir do Capão Redondo até a Barra Funda e isso me causou temor. O médico queria o boletim de ocorrência (…) No fim, eu respondi processo e consegui comprovar, mas eu fico pensando: eu sofro a violência e ainda tenho que provar. Olha como é a lesbofobia”, completa.
Estado de alerta
Assim como Débora, a mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (FFLCH/USP), Fernanda Gomes, 34, do Coletivo Luana Barbosa, já sofreu violência no transporte público. Ela estava junto à ex-companheira que teria tentado defender um ambulante que estava sendo agredido por seguranças na Estação Barra Funda, linha vermelha do metrô, quando as duas também passaram a ser agredidas e ofendidas pelos funcionários.
Em seu projeto de pesquisa acadêmica, Fernanda reúne casos de mulheres lésbicas que também foram agredidas em situações semelhantes à de Débora. Ela comenta, em particular, a história de Luana Barbosa dos Reis, mulher negra e lésbica que dá nome ao coletivo do qual faz parte, e que morreu por consequência de lesões cerebrais provocadas por três policiais militares que a espancaram na esquina de casa, em 2016.
“A Luana Barbosa também foi confundida com um homem. Ela teve que levantar a blusa e mostrar os seios para provar que era uma mulher e falou, várias vezes, durante a abordagem policial violenta: ‘eu sou mulher e eu te provo que sou mulher levantando a blusa’. E ela levou um soco, né? E, através deste soco, ela revidou, porque ninguém apanha quieto e foi ali que a Luana morreu, por conta da lesbofobia e do racismo, sobretudo”, comenta a assistente social.
Fernanda, que também é uma mulher negra e periférica, descreve que já foi agredida e ameaçada de morte pelo ex-marido com quem teve um filho e foi casada durante nove anos antes de se reconhecer como lésbica. Ela explica que vive numa cidade lesbofóbica e está sempre em estado de alerta, evitando, inclusive, costumes que podem parecer simples aos olhos de casais heterossexuais.
“A gente tá o tempo todo em choque, o tempo todo em pânico como se a gente não pudesse viver, minimamente, como qualquer casal hétero vive, né, pegar na mão, dar um beijo na escada rolante. Quando eu era pequenininha, ia em lugares em que as pessoas andavam de escadas rolantes e achava romântico os casais que se beijavam, sabe? Mas eu ainda não consegui viver essa situação tão simples”
comenta a assistente social de 34 anos.
Para a mestranda, as ‘sapatonas’ são uma afronta à sociedade patriarcal, porque fazem parte de um grupo que renuncia por completo a presença dos homens, enquanto todas as outras identidades da comunidade (gays, transexuais, bissexuais, pansexuais e até mesmo assexuais) vão se relacionar com eles sexualmente ou afetivamente. No entanto, ela comenta que a questão racial, ainda assim, se sobressai dentre todas essas opressões.
“Não tenho tanta certeza de que mulheres brancas que são lésbicas são agredidas de maneira tão violenta quanto as mulheres negras. Parece que o nosso corpo está disponível. O nosso corpo preto está disponível para as pessoas xingarem, maltratarem e matarem. Ele é um corpo matável, há uma licença racista para nos matarem”
finaliza a assistente social.
Dona de mim
Quase dois anos após as agressões, Débora comenta que ainda sente muito medo ao sair de casa e que se sente tão vulnerável quanto uma criança. As violências continuam presentes no cotidiano da assistente social que encontrou suporte na terapia e em um coletivo formado majoritariamente por mulheres negras e lésbicas iguais a ela, chamado Dona de Mim.
Nascido no Jardim Jangadeiro, no distrito do Capão Redondo, na garagem da casa da pós-graduanda em Serviço Social e Saúde Pública Erica Santos, 38, quando ela ainda estava no terceiro semestre da graduação, o coletivo é a resposta para uma angústia coletiva. Enquanto mulher negra, lésbica, mãe solo, deficiente e periférica, Erica sentia a necessidade de ser escutada e ficava se perguntando se não tinham outras mulheres esperando para serem ouvidas também.
O Dona de mim surge, portanto, nas vésperas das eleições de 2018 com uma proposta de educação política popular e se consolida como uma rede de apoio a mulheres em situação de violência. De acordo com a assistente social, esse trabalho é fundamental porque as mulheres são atravessadas por uma série de violências e se sentem extremamente sobrecarregadas, embora sejam a base estrutural da nossa sociedade.
Erica comenta que conheceu Débora em movimentos políticos e através de amizades que as duas tinham em comum e, assim que soube que ela havia sido agredida, se reuniu com outras integrantes do coletivo, comprou alguns chocolates e foi até a casa da vítima prestar apoio e solidariedade.
“Enquanto mulher eu me senti agredida como ela, porque eu não posso sentir a dor física que ela sentiu, nem posso falar que consigo imaginar, porque imaginar é uma coisa muito superficial. Mas a gente sente isso no dia-a-dia, nos olhares, as pessoas te julgam pela forma que você se veste, pelo seu corte de cabelo, e isso incomoda”
declara Erica ao falar sobre a importância de estar ao lado de Débora naquele momento.