Opinião

O que é “Black Money”?

Leia também:

Tem muita gente aqui no Brasil que parece não entender a ideia do “dinheiro preto”. Já ouvi pessoas dizerem coisas como, imagine se criássemos o termo “dinheiro branco”  ou disséssemos coisas como “isso é racismo reverso”. Esses comentários são apenas reflexos do racismo que já existe dentro dessa pessoa.

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.


Foto: Hilberto Dias / Arte: Rogerinho Art

Em nossa opinião, é a ideia de apoiar comerciantes, empresas e prestadores de serviços que sejam pretos. Significa deixar o “dólar” ou no caso do Brasil, o “real” circular dentro da comunidade preta e entre os pequenos negócios, para que o nosso dinheiro nos beneficie, incentivando o consumo consciente e intelectual através da representatividade.

Nos Estados Unidos o dólar circula na comunidade asiática e na comunidade branca (especialmente judaica), o que isso realmente significa é, digamos, em uma comunidade judaica, um judeu recebe seu salário. Em sua vizinhança haverá bancos judeus, escolas públicas e privadas, hospitais, padarias, etc., que ele comprará dessas pessoas e elas farão a mesma coisa. O dólar judeu vai circular, e essa comunidade vai acabar sendo mais saudável financeiramente. Enquanto isso, só circula o dólar negro nos Estados Unidos, ou seja, afro-americanos recebem o pagamento e logo vão gastar nos clubes, comprar roupas, tênis dentre outras coisas e nada que implique colocar nosso dinheiro nas mãos de outras pessoas negras. Portanto, muitos bairros pretos nos Estados Unidos continuam em estado de precariedade. O dinheiro definitivamente não circula entre os afro-americanos.

Tem muita gente aqui no Brasil que parece não entender a ideia do “dinheiro preto”. Já ouvi pessoas dizerem coisas como, imagine se criássemos o termo “dinheiro branco” (como a palavra “dinheiro” ainda não sugere isso) ou disséssemos coisas como “isso é racismo reverso”. Esses comentários são apenas reflexos do racismo que já existe dentro dessa pessoa. As pessoas, especialmente neste país, não têm a capacidade de entender como certos conceitos como “Black Money” e “Black Love” são extremamente cruciais para a saúde e sobrevivência de nossas comunidades pretas diaspóricas.

É interessante o fato que todas essas opiniões manifestadas especialmente nas redes sociais, apontam um profundo desconforto quando falamos de assuntos que nos afetam, mas os chineses, indianos, japoneses, judeus e outros grupos que fazem o dinheiro circular em suas comunidades são vistos como normais quando se unem por um propósito, eles podem sem problemas. Eles inclusive namoram e constituem família com pessoas da mesma etnia. Quando os pretos (especialmente aqui no Brasil) falam sobre querer se relacionar apenas com pessoas pretas, é um grande problema. 

Uma breve história

Após a abolição, um conjunto de códigos foi criado pelos estados do sul dos Estados Unidos chamado “Códigos Negros” que diziam que nenhum homem negro poderia estar desempregado, mas também nenhum homem negro poderia ter terras e contratar outro homem negro para trabalhar, então a sociedade branca do sul que tinha acabado de perder a guerra e seu estilo de vida orgulhoso e queriam criar uma sociedade que se parecesse o mais antiga e conservadora possível.

Portanto, por muitas décadas após a escravidão, o povo afro-americano permaneceu em um sistema análogo à escravidão, porém sem o título de escravidão. Isso foi depois da guerra civil, e o sul por muitos anos ainda estava sendo ocupado por soldados do norte, mas quando os soldados começaram a sair depois do famoso caso Plessy vs Ferguson de 1896, onde um homem negro foi informado que ele tinha que viajar no vagão reservado para pretos do trem no estado da Louisiana. 

Até então, não havia leis federais ou brecha para apoiar a segregação, mas uma vez que a ideia de “separados, mas iguais” (que nunca foi igual) provou não ser inconstitucional na Louisiana, todos os estados do sul adotaram o mesmo método e por muito mais de meio século os pretos foram segregados e enfrentaram um tipo de terrorismo que você encontraria nas piores nações.

Mas vamos deixar isso de lado e focar nos aspectos positivos da segregação nos Estados Unidos. Os negros foram forçados a ter uma mente empresarial. Antes da integração legal, no final dos anos 1950, existiam hospitais, fábricas, restaurantes, ligas esportivas que jogavam nacional e internacionalmente (já que as ligas negras de beisebol tinham um time de Cuba). 

Era determinado que a integração legal não se misturasse e casasse com brancos, mas que tivessem proteções legais e melhores estruturas e oportunidades. Todos os produtos e serviços eram de qualidade muito inferior do que era para brancos. Também tinha a preocupação de não serem assassinados por coisas simples como olhar para uma mulher branca por muito tempo ou não sair do caminho de um homem branco andando na calçada. Os brancos não viam os negros como humanos, suas vidas tinham muito menos valor como corpos livres e não como escravos.

Durante aquele tempo nos bairros negros dos Estados Unidos, o dólar certamente circulou, não tinha escolha, tinha que circular porque os negros não podiam gastar seu dinheiro nos comércios dos brancos, mesmo que quisessem. A maioria dos pretos ainda eram muito pobres, mas muitas fortunas foram feitas por pretos de sorte naquela época. Avance rapidamente para Brown vs Board of Education e as leis que acabaram com a segregação legal e o que começamos a ver é:

– Um ataque sistemático dos EUA aos negócios negros e à liberdade econômica dos negros.

– Um desejo de validação, negros que queriam finalmente ser capazes de comprar produtos brancos e ir aos espaços onde os brancos iam para se sentirem mais realizados, mesmo que isso significasse dar seu dinheiro para pessoas que te odeiam. Veja desta forma, se por muitas décadas os produtos de outros países (que eram muito melhores e mais baratos) fossem impedidos de vir para o Brasil, você apoiaria os produtos brasileiros, mas no momento em que produtos importados podem vir para o Brasil com um custo inferior e uma qualidade superior, muita gente vai deixar de consumir produtos nacional que antes apoiavam, e isso desmoronaria a economia brasileira.

Isso é o que em pequena escala aconteceu com a comunidade afro-americana antes semiautônoma nos Estados Unidos na década de 1960 até 1990, e ainda estamos sentindo os efeitos, e é por isso que existe hoje um movimento que resgatou o conceito de Black Money.

O que perdemos?

A ironia da integração é que ela parece tão pacífica e inofensiva para os negros americanos que a história geralmente a mostra como positiva. No entanto, para mim, BiXop, aos olhos de muitos negros com consciência racial, percebemos que foi a pior coisa desde a escravidão que poderia ter acontecido a nós como um povo. Nunca nos integramos culturalmente, ficamos morando a maior parte em bairros negros, mas muitas das pessoas que possuíam a maior riqueza nas comunidades negras (novamente procurando por essa validação, querendo ser verdadeiramente “americanos”) se mudaram para as comunidades brancas. A ideia de que eles foram em busca de uma vida melhor entre um grupo de terroristas selvagens é muito conflitante para mim.

Com isso, os bairros pretos perdem não só seus investidores, mas também a maioria dos negócios ao longo dos anos. Imagine os restaurantes negros nas áreas negras que não podiam mais competir com a nova franquia branca de restaurantes de fast food que agora podiam entrar na comunidade negra e, claro, por que os negros que querem ser “americanos” não correm para comer no McDonald’s (que nos EUA era e ainda é muito mais barato do que um prato feito aqui no Brasil) e ignora os restaurantes dos negros. 

Perderam os bancos, as empresas de transporte, as seguradoras, quase tudo que tínham conquistado com a segregação. Esse foi o grande motivo que causou o declínio da comunidade negra nos Estados Unidos e porque ha muitos lugares que, infelizmente, estão cheios de violência e carecem de oportunidades na nação mais rica do mundo.

Em 1985, sessenta bancos de propriedade de pessoas pretas, prestavam serviços financeiros às suas comunidades; hoje, restam apenas vinte e três. Em onze estados que tiveram bancos de propriedade de negros em 1994, nenhum ainda está em atividade. Das cinquenta seguradoras de propriedade de negros que operavam durante a década de 1980, hoje apenas duas permanecem.

No mesmo período, dezenas de milhares de estabelecimentos varejistas de propriedade de negros e empresas de serviços locais também desapareceram, tendo falido ou sido adquiridos por empresas maiores. Refletindo esses desenvolvimentos, os negros americanos em idade produtiva tornaram-se muito menos propensos a serem seus próprios patrões do que na década de 1990. O número per capita de empregadores negros, por exemplo, diminuiu cerca de 12% apenas entre 1997 e 2014.

Brian S. Feldman – Washington Monthly

O que está por trás dessas tendências e quais são as implicações para a sociedade americana como um todo? Com certeza, pelo menos parte desse declínio empresarial reflete desenvolvimentos econômicos positivos. Uma parcela lentamente crescente de negros americanos agora tem empregos assalariados de colarinho branco e tem mais opções de emprego além de administrar seus próprios negócios. O movimento de milhões de famílias negras para subúrbios integrados nos últimos quarenta anos também é uma tendência bem-vinda, mesmo que um dos efeitos tenha sido enfraquecer a viabilidade de muitos negócios independentes de propriedade de negros deixados para trás em bairros historicamente negros.

A ironia ainda maior é como o movimento pelos direitos civis foi conduzido foi um belo ato de organização negra. Bancos negros que emprestaram dinheiro às igrejas e líderes negros que protestavam o uso de transporte negro para levar pessoas que boicotavam os serviços de ônibus dos brancos. Os hotéis que abrigavam manifestantes de todo o país e os restaurantes que os alimentavam. A mesma luta pelos direitos de integração pode ter levado posteriormente à destruição de muitas dessas empresas. Até o Dr. Martin Luther King chegou a essa conclusão quando disse: “Posso ter nos integrado em um prédio em chamas”.

O antigo Brooks Motel, anteriormente localizado na Morris Street (Charleston, Carolina do Sul), é outro exemplo de como a integração contribuiu para diminuir o número de negócios viáveis de propriedade de negros. Construído antes da assinatura da Lei dos Direitos Civis pelo presidente Lyndon B. Johnson em 1967, o motel acomodou a maioria dos líderes dos direitos civis quando eles vieram para Charleston, incluindo o Dr. Martin L. King, Jr. Hoje, não há placa do motel ou do restaurante Brooks. Ambos foram demolidos para dar lugar a condomínios, que deslocaram não apenas empresas, mas também famílias dos bairros tradicionalmente negro.

Barney Blakeney – Charleston City Paper

Esses são os motivos pelos quais um movimento Black Money é necessário nos Estados Unidos e aqui no Brasil, considerando que é o país com a maior população preta fora da África. Aqui no Brasil ainda é possível ver negócios de pessoas pretas e brasileiras dentro das quebradas, porém, muitas vezes sem nenhuma consciência racial e intelectual. Mas estamos lentamente despertando e é possível notar uma certa mudança partindo da estética. Mulheres, homens e crianças estão assumindo seus cabelos naturais, o que é sim um grande avanço, mas não devemos nos limitar a cultura negra à estética. Precisamos nos fortalecer financeiramente e nos perceber enquanto indivíduo e grupo político, numa sociedade que tenta a todo momento deslegitimar tudo o que fazemos, pelo fato de sermos pretos.

Segundo uma pesquisa do SEBRAE de 2017 – os negros formam o maior contingente de empreendedores do Brasil.

Pessoas pretas movimenta mais de 1 trilhão e meio de reais por ano aqui no Brasil. O grupo de pessoas pretas representa 38,8% dos pequenos negócios no país contra 32,9% dos brancos. Os pretos lideram tanto no ranking de empreendedores já estabelecidos, tanto no ranking de empreendedores iniciantes. Com isso, grandes empresas de cosméticos passaram a investir em estratégias de marketing voltada para pessoas pretas, com o interesse de faturar nas nossas custas.

Somos um povo criativo, detentores de muitas habilidades. No Brasil tinha uma grande diversidade de trabalho escravo. Muitas mulheres pretas trabalhavam nas ruas como escravas de ganho, ditas “negras de tabuleiro” vendiam quitutes, alimentos, aguardente. Tinha as quitandeiras, os tropeiros que exerciam atividades comerciais de uma região à outra, carpinteiros, ferreiros, engenheiros, mestre de artesanatos, barbeiros e até mesmo professores. O pouco do dinheiro que recebiam como escravos de ganho, muitos deles investiam em cooperativas secretas organizadas por pretos libertos e escravizados que coletivamente economizavam para comprar sua própria liberdade, a carta de alforria e o que mais fosse de emergência entre os associados. Teve histórias de ex escravos que fizeram uma pequena fortuna no Brasil colonial. Temos também o exemplo dos quilombos que tinham grande potência econômica através das produções e trocas de mercadorias com outros quilombos.

A diversidade de encargos gerou ainda outras camadas sociais, principalmente nas localidades portuárias e associadas à mineração, destinadas ao comércio varejista. Ainda que as funções comerciais fossem exercidas em sua maioria por homens, mulheres negras livres exerceram um importante papel nesse aspecto da vida econômica e social no período colonial brasileiro.

É possível observar que a atividade do comércio varejista é comum por parte das mulheres africanas no Brasil e na África, principalmente na região centro-ocidental do continente, onde em várias etnias cabia às mulheres a atividade comercial varejista. Com isso, a prática comercial ligada à divisão social do trabalho de acordo com o sexo seria uma permanência econômica e cultural mantida pelas africanas no Brasil. E essa relação de raça e gênero muito afetam as mulheres pretas no momento de abrir a própria empresa, precisam lidar com o racismo e o machismo.

Já sabemos que temos o espírito empreendedor, mas não temos educação financeira. As leis aplicadas no Brasil eram escravocratas, excludentes e genocida. Vou citar aqui algumas, só para enfatizar essa reflexão:

– 1837: Primeira lei de educação: negros NÃO podem ir à escola.

– 1850: Lei das terras: negros NÃO podem ser proprietários.

– 1871: Lei do ventre Livre: mas ninguém nascia livre.

– 1885: Lei do sexagenário: o escravo com mais de 60 anos poderia ser livre após trabalhar mais 2 anos afim de agradecer o patrão. Poucos chegavam a essa idade.

– 1888: Abolição depois de longos e sórdidos 388 anos de escravidão. Uma lei pra inglês vê.

– 1890: Lei dos vadios & capoeiras: todos os negros que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada, iriam pra cadeia. O que deu início ao encarceramento em massa da população negra. Um agravante que perdura ainda na atualidade.

É nossa obrigação mudar esse cenário! Não adianta só cobrar o Estado, sendo que o próprio sustenta o racismo estrutural. Cabe a nós buscarmos por uma mudança na ordem social e pensarmos duas vezes antes de gastar horrores no MCDonald’s pra depois pedir desconto pra uma irmã de quebrada. Já passou da hora da gente se valorizar e não mais ter receio de colocar um preço justo no nosso trabalho.

Temos hoje em dia grandes referências de pessoas pretas que entenderam o conceito de Black Money e se organizam para oferecer produtos e serviços com representatividade e qualidade. Esses pequenos empreendedores precisam do nosso apoio. Vamos fechar com os nossos, e gradualmente deixaremos de consumir das grandes empresas brancas, até porque a maioria se diz antirracista, adoram afirmar que não compactuam com o racismo, mas não tem nenhuma política de inclusão e de diversidade.

E para fechar, vamos de música!

Lançamos recentemente o videoclipe Black Is Back In Style (preto voltou de moda) com imagens que trouxe com sensibilidade a jornada de um casal que atravessa desafios juntos e se conscientiza coletivamente. Além de abordar a relação de intimidade, nós reforçamos a perspectiva do Black Money dentro das periferias, usando a música como ferramenta de conscientização e emancipação do povo preto.

Neste clipe sensualizamos um pouco, mostrando o nosso cotidiano e o poder do nosso amor afrocentrado, enquanto promovemos algumas marcas afro brasileiras que estão em ascensão e a ideia de seguirmos unidos, investindo na irmã e no irmão que sustenta seus respectivos negócios com grandes dificuldades, mas com muita dedicação.

Com Lena Silva e BiXop no vocal a produção de Jonathas Noh, a música tem poder de embalar as noites de quem busca a valorização do afeto e da identidade. O roteiro e a direção de UmSoh, com câmera e edição de Hilberto Dias, por sua vez, trazemos aspectos do nosso dia a dia, de um jeito sensível, atraente e artístico, utilizando recursos fotográficos que representam tanto a sensualidade quanto o empoderamento.

A música conta ainda com um toque todo especial que nós UmSoh, como casal intercultural, trabalhamos com frequência: é cantada em português e inglês. Confira o lançamento nas principais plataformas digitais.

Autor

1 COMENTÁRIO

  1. E quando brancos se apropriam dessa ideia e lucram com isso? Oque é?? Estou pesquisando mais sobre e querendo entender.. Sou branco e reconheço meu lugar de fala eu apoio a causa negra como a das mulheres e dos lgbti porém não me enquadro em nenhuma.. A única que me enquadro é a de ser periférico e pobre.. Que eu acredito que 80% do País se enquadra entre negros e brancos.. Vejo muita gente branca lucrando nas costas de quem realmente sofre na pele.. E percebo que é pura hipocrisia.. Gente que “entende” de luta e mesmo assim lucra com a dor e o sofrimen de muitos..

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.