Opinião

Uma vítima imperfeita

A falta de compromisso em garantir direitos fundamentais a vítimas de violência doméstica, expõe como estigmas e preconceitos podem transformar o acesso à saúde em tortura.
Por:
Shisleni de Oliveira-Macedo

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Nas últimas semanas, li nos jornais sobre uma jovem estudante de 21 anos e sua via crucis para acessar o aborto legal em São Paulo. Por conta de violência doméstica e abuso sexual do então namorado, Maria engravidou (vou manter o nome fictício usado pela imprensa). Descobriu a gravidez já com mais de 13 semanas, mas só se deu conta de que tinha direito ao aborto legal depois de 24 semanas.

Consegui seu contato e marcamos de nos conhecer. Na estação de trem, encontrei uma mocinha miúda, de cabelos cacheados, bem agasalhada e com uma mochila enorme nas costas. Se ela dissesse que tinha 15 anos, eu teria acreditado. “Tá de mudança?”, brinquei. Ela respondeu com um sorriso, dizendo que não tem tido forças para ir para faculdade, mas que tem tentado manter as leituras em dia na biblioteca perto de casa. 

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Maria é uma jovem negra periférica, que está no segundo ano de graduação em uma universidade pública. Super articulada, dona de olhos curiosos, ela é extraordinária. E é justamente por ser extraordinária que sua vida está de cabeça para baixo. 

Durante todo o último mês, se tornam comuns comentários do tipo: nossa, uma estudante desta universidade não tinha acesso à informação? Por que não separou dele antes? Não procurou ajuda antes? 

Além de uma enorme ignorância sobre a dinâmica da violência, inclusive nos serviços de acolhimento, essas perguntas ignoram também que toda e qualquer mulher pode ser vítima de violência doméstica. Outra Maria, a da Penha, é um exemplo.

É mais provável o senso comum criar empatia com uma história terrível, de uma menina afroindígena de 10 anos, do interior de algum estado fora do sudeste, abusada por um familiar. Já que ela não tem nenhuma agência sobre sua própria desgraça, não pode ser também responsabilizada. Elas existem, são um retrato cruel da imensa tragédia em que estamos submersas. 

Talvez por isso dê mais trabalho argumentar contra uma vítima perfeita. 

Só que o problema de Maria é justamente ser uma vítima imperfeita. Mais de um ano de relacionamento abusivo havia passado quando ela parou de duvidar de si mesma: “eu só tomei consciência de verdade depois que eu fui no Hospital do Campo Limpo. Quando eu contei a minha história lá, a assistente social e a psicóloga me acolheram, me ajudaram a identificar as muitas camadas do que eu estava vivendo. Conforme elas iam me explicando, parecia um bingo e eu tinha marcado quase todos os pontos”.

A via crucis começou porque Maria deu o azar da médica estar de férias e precisou ser transferida para o Hospital Mário Degni, no Rio Pequeno. Lá, teve que recomeçar do zero e perdeu um mês, em seis idas e vindas ao hospital, chegando a 29 semanas. Para cada vitória que teve na vida, foi se tornando mais imperfeita e a equipe se sentiu excessivamente à vontade para minimizar sua história. 

Uma equipe de profissionais de saúde tirou o jaleco do cuidado, vestiu toga de juiz e criou barreiras no acesso a um direito.

Nas seis visitas ao hospital Mario Degni, Maria não recebeu nenhuma orientação sobre serviços para mulheres vítimas de violência, nem tampouco informações sobre medida protetiva ou fez qualquer exame médico. 

Não houve cuidado para ela, a paciente. Ao contrário, foi colocada em risco psíquico pela demora na autorização do aborto e pelos comentários incabíveis (“já escolheu o nome?”, “você tem uma história de vida bonita, vai ser uma mãe guerreira”), prova da falta de preparo da equipe técnica. Foi submetida a um risco físico, por não ser incluída em nenhuma rede de suporte que a ajudasse a sair da situação de violência doméstica, que poderia escalar a qualquer momento; e a um risco obstétrico, por condições comuns a gravidez, como diabetes gestacional e pré-eclampsia, que aumentam a medida que a idade gestacional avança, sem o devido cuidado em saúde. 

A equipe nunca entregou uma negativa ao aborto, mas estimulou que ela não voltasse ao hospital, que procurasse a adoção e pediu que viesse com seus pais, criando um terror psicológico. “Quando eu comecei a chorar, elas me trataram um pouco melhor”. 

O que Maria viveu é tortura.

Fiquei dias olhando para a página em branco depois de encontrar com Maria. Me faltavam palavras. Uma jovem mulher preta e periférica, consegue entrar em uma das universidades mais importantes do país, mas ninguém consegue olhar pra ela e dizer: você tem o direito de escolher sobre a sua vida. 

A gente tinha conversado por telefone antes de se encontrar, e eu levei um livro de presente, o Gravidez Indesejada, um importante estudo sobre os impactos de ter o acesso ao aborto negado. Tinha lido ali uma história muito parecida com a dela, e com um final positivo, achei que Maria poderia se animar um pouco.

“Amei, obrigada! É bom sentir que não sou a única, não estou sozinha. Tô passando com uma psicóloga do Projeto Vivas, e conversamos sobre o quanto ser uma mulher que defende seus direitos e que busca ser feliz e livre (liberdade de ir e vir, de estudar, de trabalhar, de se colocar, de fazer planos) incomoda, e incomoda bastante. Ela disse que também viu a matéria e que me considerava uma guerreira sim, mas não por ter passado por tudo isso, mas sim por não ter me resignado, pois eu poderia ter desistido e ter aceitado a minha “sina”. Ela completou dizendo que eu posso ser guerreira para muitas outras coisas, como nos estudos, para um trabalho legal, para uma vida legal. Que a guerra de ser mãe, não é obrigação, ou melhor, não deveria ser.”

Não mesmo.

Com o apoio do Projeto Vivas, Maria foi acolhida com muito mais profissionalismo e empatia em outro hospital. Conseguiu fazer o aborto e já tomou sua vida de volta.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.


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