Homens não devem cuidar de crianças: a ilegalidade da paternidade

Edição:
Ronaldo Matos

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Como a sociedade reage aos primeiros meses de um homem sendo pai? Detalhes, olhares, comentários, sutilezas e muitas outras situações cotidianas reforçam a inquietação do ser humano ao ver um homem preto e periférico se descobrindo e vivenciando a paternidade. Mas o que há de errado nisso?

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Dimas Reis e seu filho Malik na sede da Preto Império, projeto cultural que ele organiza junto a outras agentes culturais da Brasilândia, zona norte de São Paulo. (Foto: Bea Reis)

Eu quero e preciso começar esse texto dizendo que não estou aqui escrevendo para ser referência, principalmente para mulheres que vivenciam diversamente sua maternidade.

Outra coisa que não me interessa é negar a maternidade ou enaltecer a paternidade, mas questionar o machismo ao qual nós homens pretos estamos submetidos e alguns de nós buscamos se desvencilhar.

Tão bem tramado ele, que favorece, facilita e força a ausência da paternidade em diversos níveis de influência: psicológico, social, econômico, cultural e acrescentaria, com muito deboche, ficcional.

Tenho observado que rolou uma alteração do cotidiano, nos últimos seis meses por conta da experiência da paternidade. Falo desse tempo, pois só aí que fisicamente tornou-se mais fácil observar um pai e um filho, ou pai e filho, ou não na verdade, observarem um homem e um bebê recém-nascido.

Das primeiras coisas que senti, foi que os motoristas de ônibus, não nos seus 50%, ignoram a necessidade de cumprir a lei e aguardar que se sente com a criança para mover o ônibus. Não consigo conceber, parece que o cérebro não assimila que naquele utensílio junto ao corpo, com duas perninhas e dois bracinhos se projetando para fora dele (as vezes não dá pra ver a cabeça por conta que está coberta) que estou com uma criança, já chegaram a dizer com espanto: “pensei que era um boneco” (talvez eu pareça engraçado rs).

Outro ponto, que acho uma das pérolas mais podres do machismo, compartilhado e incrustado em todes nós: as pessoas abominam o fato do pai ter total capacidade de suprir as necessidades do filho na ausência da mãe, essa função parece ser única, exclusiva e obrigatória da mãe e ai dela.

Às vezes (eu disse ‘as vezes’ em) mesmo para a mãe é difícil quando um pai é o que ele deveria ser.To falando aqui daquela construção social que obriga a mulher a cuidar de si, do filho, do companheiro e por vezes de outros parentes, essa educação fica lá, tão encravada que, chega a rolar um estranhamento quando o pai é o que ele deveria ser. Se não se estranha, se enaltece, como não sei se deve ser.

Nesse primeiro texto quero me aprofundar mais nesse segundo ponto. Sinto um cerco, atento e desejoso de que nós homens, assumamos “o seu lugar de homem” na história, afinal “as coisas sempre foram assim”. 

Mas vamos lá, já que estamos nos falando pela primeira vez, deixa eu me apresentar.

Eu definido homem hétero, cis normativo, negro, periférico e desentendido-bi. Fui criado um pouco excluído das rodas masculinas, meu pai e minha mãe pareciam não querer me ensinar os palavrões, cuspes no chão e fofocas safadinhas na roda pós samba da laje no quintal dos primos.

Lembro dessa roda, todos sentados conversando e meu pai dizendo: ‘não é pra você ficar aqui não, vá com sua mãe’. Como quem dizia que o que se falava ali não eram coisas pra eu absorver.

Não por isso, mas grato por isso, toda minha vida me referenciei pelo feminino: minhas avós, minha mãe, professoras e até na adolescência minhas outras mães (Carmem, dona do bar em frente de casa e Dona Izilda, conhecida como Zilda só, a benzedeira). Elas eram tão importantes pra mim que tinham esse peso de mães, junto com minhas avós também. Só mais tarde a gente vai conceituar isso: que nos educamos mesmo é em comunidade né?

Cresci dentro desse contexto onde eu não gostava de jogar pião, empinar pipa, pensar no carro que eu teria ou nas namoradinhas que eu devia “ter”. Quando entrei na creche, com pouco menos de seis anos de idade lembro que meu primo já tinha “tido” umas duas namoradinhas.

Quando adolescente sempre esperei e sonhei pela mulher dos meus sonhos (a princesa encantada… ops devia ser príncipe né rs). Lá pelos 23 anos já me achava pronto e super desejoso de ter um filho, me deparei em meus relacionamentos com os projetos de vida das companheiras… e puxa como gosto de admirar as pessoas com quem me relaciono.

Então todas, que convivi (e convivo), considero mulheres fortes, bem decididas, com uma percepção de si e com um plano traçado no qual naqueles momentos não incluía ter um filho. Hoje com 33 anos, pra minha alegria, eis então, rolou uma sincronicidade de projetos.

Dimas se surpreende a todo momento com o fato das pessoas questionarem ou se surpreenderem com a forma como ele cuida do seu filho. (Foto: Bea Reis)

Bom, dito isso, para além de minha educação familiar ou minha vontade, sempre gostei de criança, já dei aulas em creche, já ajudei a cuidar e sempre gostei da sutileza de encantar e provocar o riso nelas. Minha avó diz que tem orgulho de como educaram os homens de nossa família, pois todos sabem cuidar de seus filhos.

Aí voltamos à vaca fria, enfim, chegou meu grande momento, o cabra pôs sua cara no mundo, recebeu seu nome e escolheu uma mãe porreta também, batalhadora, dona da feira, arrimo de família, daquelas que se depender dela, ninguém passa nenhum tipo de necessidade, sua insônia é não garantir o dia seguinte, com uma força de garimpar e arar que admiro as tampas é o pulso dela, o prazer dela, pra além da necessidade de garantir as coisas, tem um gosto e prazer pelo que escolheu trabalhar.

Então a gente tem nossa dança com o pequeno, não é obrigação, tarefa ou sei lá o que ‘só dela’ garantir o bem estar do bebê. Então estou eu na rua, no médico, na escola, no rolê, nas reuniões ou o que quer que seja com ele, assim que ele começou a depender menos do leite materno, ficou mais fácil compartilharmos os cuidados com ele.

Retomemos então as reflexões:

Em algum momento acalorado me lembro de emergir a palavra super pai, pai presente, ou algo do tipo. Eu de verdade não tenho feito esforço algum para ser um pai, quero há tantos anos poder cuidar de uma criança, ao contrário do que se prega na masculinidade de ter um filho para ter um legado onde na verdade a mãe que nutre, forma e afeta.

Antes de ter ele, aprendi e vivenciei o máximo que pude, inclusive pra querer ser pai, mesmo com todo desafio que é exaustivo e prazeroso, gratificante, mas exaustivo… meu corpo que o diga.

Esses dias um amigo, me vendo em um curso com o bebê, resolveu dizer em alto e bom som em meio à turma, que eu era um pai presente, um pai ativo e fiz questão de dizer que eu só era um pai, não digo isso com humildade ou querendo ser humilde, sou leonino e sou aparecido mesmo, mas não mereço e não estou buscando glórias. 

Foto: Bea Reis

Por algumas vezes termos referências de pais não totalmente envolvidos em sua paternidade (por diversos motivos e em comparação a carga da maternidade) que quando um pai é quase que 100% dedicado e interessado naquele projeto de vida, assusta, incomodam, tira do eixo e as pessoas não sabem como lidar, não sabem como resolver.

É dado que a mãe deve passar boa parte do tempo com o filho; que é com a mãe que a criança aprende as primeiras palavras, é a partir da mãe que a criança percebe o mundo e tantos outros conceitos, pesquisados, validados e aculturados que sem exemplos e referências do lado da paternidade, neste sentido, dá uma travada na cabeça, no como devo me colocar, o quanto devo ceder, o quanto devo compartilhar, do que abro e não abro mão dentro dessa narrativa que me trazem.

Sinto que é muito forte a obrigação divina da mãe, dizem que Deus é tão bom que é como se baixasse um download na mãe e ela soubesse tudo o que o seu filho precisa, ela vai sentir, ela vai saber, ela tem que saber! Tem que saber! Quão violento é isso e se a pessoa não sabe, tem que fingir que sabe, se a pessoa não sente, tem que forçar e sentir, se tiver dúvida deve se calar, nunca demonstrar a ninguém, menos ainda ao companheiro: ignorância, desentendimento, dúvida, surpresa.

Ela está sendo vigiada, por outras mães, pela sua, pela do companheiro, pelas irmãs, vizinhas, toda a comunidade está a postos para dispor suas expectativas como uma avalanche sobre ela e só cabe a ela aceitar o peso da loucura (e nada de depressão pós-parto).

E é nesse ponto da conversa que chegamos à abominação da paternidade. Homens não devem cuidar de crianças.

Você sobe a viela e alguém te aborda: nossa que bonito, é seu filho? No outro dia, sobe novamente a viela e outra pessoa te aborda: é seu filho? Em outro dia, vai à padaria e lhe perguntam a mesma coisa, qual é? Por que eu estaria às 8h, 9h da manhã, ou indo ao médico ou estando repetidas vezes com a mesma criança?

-Há Dimas não exagera, #leoninodramático meu.

Ah sim ok, vou perguntar pra Simone, minha companheira, quantas vezes desde que ele nasceu perguntaram se o filho era dela. Não, não perguntaram, porque é comum uma mulher ser mãe da criança que porta, é aceitável, é o dever dela, está tudo no lugar certo, mas um homem, com bolsinha da criança, a carregando no colo junto ao corpo, enchendo ela de beijos e carinhos, ele não deveria estar ali, não foi assim que tudo foi pensado.

Mas não para por ai caros amigos, e alguns de vocês sabem disso né, já devem ter vivenciado a pergunta máxima: onde está a mãe dessa criança (kkkkk nesse momento eu imagino aquelas cenas de anime: onde aparece como que a alma do personagem mostrando o que ele realmente está pensando e sentindo; e vejo a pessoal que me pergunta com aquela expressão maquiavélica, sádica e prazerosa do senhor Burns).

Eu tive uma impressão e uma sensação com estas experiências: a primeira é que eu não tenho obrigação de ser pai, não preciso me preocupar com isso, eu não deveria me ocupar com cuidar de uma criança.

A segunda, essa tenho certeza, mais alojada pelo machismo, foi uma leveza e um prazer, da não responsabilidade, aquela sensação que o privilégio dá, sabe? Aquela em que você pode usufruir o bem estar social que lhe foi construído, lhe dado, imposto e você nem deveria desfazer dele, pois é uma afronta a todo um esforço geracional de garantir que você homem possa desbravar o mundo, viver suas experiências, seu instinto, suas aspirações, pois toda obrigação e responsabilidade recairá sobre a mãe.

Me pareceu que a qualquer momento eu tenho essa escolha bizarra de não ser pai do Malik, de não ter que me preocupar com o tipo de afeto com que afeto ele e como minhas ações e escolhas vão afetá-lo. Todo um sistema muito bem desenhado para que homens não cuidem de crianças.

E tu como tem sido os primeiros meses de paternidade? 

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