Opinião

O parque, o mirante e uma interrogação: pode o monumento natural do Morro do Cruzeiro existir ao lado do lixo?

A implementação inconclusa do Parque Natural do Morro do Cruzeiro e o absurdo da expansão de aterros sanitários em seus arredores.

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O ano é 2019. Junto com as parceiras e parceiros do CPDOC Guaianás (coletivo de patrimônio e memória das periferias que orgulhosamente integro desde 2018) e guiados pelo militante trotskista, morador e educador ambiental (agora também historiador e professor de história) Pedro Caranicolov,  subimos o Morro do Cruzeiro ouvindo suas memórias sobre a formação do loteamento que deu origem aos bairros do Jardim Santo André e do Jardim São Francisco na década de 1970 e de como o riacho Caaguaçu (o maior de São Mateus, hoje quase totalmente retificado e poluído) era utilizado, próximo à sua nascente, na base do morro, para o lazer dos moradores em um ambiente onde o rural e o urbano se confundiam.  

Subimos a Rua Hum do Cruzeiro e no topo do também chamado Pico do Votussununga (do tupi-guarani, “morro onde o vento assopra”) nos deparamos com a cidade que se abria ao nosso olhar. Mirante poderoso, terceiro ponto mais alto da cidade, atrás apenas de dois picos no Parque do Jaraguá. Lugar de uso religioso, por cristãos e povos de terreiro, de lazer dos residentes no bairro, com moradores criadores de caprinos, bovinos e equinos. 

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Pico das torres, onde se perfilam antenas de operadoras de celulares, cujos carros são presença frequente em nossa rota. Espaço onde podemos avistar a urbanização acelerada de São Mateus e das cidades de Santo André e Mauá, os prédios que se aninham próximos ao monotrilho (Linha 15-Prata do Metrô), o Polo Petroquímico Mauá-Capuava e, ao fundo, a Mata da Área de Preservação Ambiental do Parque do Carmo, irmã Atlântica dos arredores do Morro do Cruzeiro. 

Olhando para o outro lado, percebemos a Serra do Mar abrindo seus caminhos mas, ao mesmo tempo, enxergamos degraus secos, patamares de um solo sem árvores e com uma grande contradição que sentimos nesse lugar raro na cidade: o mau cheiro. 

Estamos diante da Central de Tratamento de Resíduos Leste (CTL), há pouco mais de 1km do espaço em que estamos, que foi decretado como Parque Municipal em 2011 (Decreto Municipal nº 52.102/11), Patrimônio Natural da Cidade pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – CONPRESP em 2018 e Monumento Natural da Cidade (MONA) em 2025.  

Detalhe da Plataforma Geosampa indicando a proximidade dos Aterros Sanitários (em verde contornado e preenchido) com as áreas do Morro do Cruzeiro e de sua área tombada (em cinza e lilás). https://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/_SBC.aspx 

Desde então, temos a convivência entre realidades e projetos distintos. Entre uma cidade de pesadelos, e uma cidade sonhada e projetada a partir de demandas de movimentos sociais. De um lado o Aterro Sanitário real, existente ali desde 1992 e que passou por três ampliações – o Aterro São João, que se torna Central de Tratamento de Resíduos Leste (CTL) em 2010, sob gestão da Ecourbis, empresa contratada pela prefeitura para gerir suas atividades. 

De outro lado, um parque abstrato e até hoje sem infraestrutura adequada, projetado para preservar uma natureza real, historicamente construída e vivida, monumental para seus moradores e para quem mais for visitá-la. 

Mobilização coletiva para preservar o território

Mas o que é feito, então, para chamar atenção sobre essa reserva de natureza, refúgio ambiental na zona leste, e para a proteção de sua biodiversidade, nascentes da bacia hidrográfica – conjunto de riachos – do Rio Aricanduva, paisagens e modos de viver de sua população? 

Os roteiros e subidas guiadas ao Morro, como as realizadas pela liderança local Fátima Magalhães, moradora do território desde os anos de 1970 e articuladora do grupo S.O.S. Morro do Cruzeiro, são parte dessa luta. 

As atividades reúnem escolas públicas e particulares do território, equipamentos de socioeducação como os Centro de Convivência de Adolescentes (CCAs), universidades como Instituto das Cidades da UNIFESP – Zona Leste e a Faculdade de Arquitetura da USP. A falta de infraestrutura do Parque e a presença do Aterro Sanitário nas proximidades, que ameaça a preservação ambiental pretendida pelo espaço, bem como uma série de promessas de compensação ambiental não realizadas, que vêm desde os anos de 1990, são assuntos recorrentes nesses roteiros. 

São presentes, neles, também, a luta das moradoras e moradores contra aterros que foram instalados e desativados – graças a essas pressões – em São Mateus nos anos de 1980 (Aterro São Mateus em área vizinha ao Parque do Carmo) e Aterro Sapopemba, também próximo ao Morro do Cruzeiro e que se torna o “Parque Aterro” Sapopemba em 2013.

O roteiro Subindo o Morro do Cruzeiro: Um Outro Olhar de São Mateus, organizado pelo CPDOC Guaianás em 2019, foi uma dessas ações, com a presença de Fátima, Pedro, gente de outros cantos da cidade e do bairro. Além dessas iniciativas, o tema vem sendo abordado em aulas das universidades públicas parceiras e hoje circula na exposição Nebulosas da Cidade, contando com imagens históricas da coleção de Fátima Magalhães, compondo um painel de diferentes disputas urbanas, ambientais e de memória em diferentes metrópoles brasileiras. Atualmente na Universidade Federal da Bahia – UFBA, teve temporada no Centro MariAntonia da USP em 2024.  

Abandono e deterioração

A oposição entre o parque sonhado e o aterro real fica nítida nas condições em que estão as Placas Interpretativas da Geodiversidade instaladas pela prefeitura da cidade em 2022 para demarcar a presença do parque no local e auxiliar no entendimento da diversidade de solos, rochas, vegetações e hidrografia presentes ali. 

‘Imagem Adriano Sousa, 2025. Subida ao Morro do Cruziero com S.O.S Morro do Cruzeiro e escolas do Distrito do São Rafael

Danificadas, em sua maioria, são o símbolo da não prioridade da gestão pública em promover espaços públicos verdes e saudáveis para a população das periferias da cidade, predominantemente negra. Essa operação real do racismo ambiental na organização do município ganhou contornos dramáticos com a Lei 18.209/2024,  aprovada de forma atropelada no final do ano passado, sem ouvir qualificadamente os movimentos sociais do bairro e da cidade que apontaram nela o relaxamento da preservação ambiental no entorno do Parque, visando a ampliação do Aterro Sanitário com a derrubada de 10 mil árvores (número absurdamente atualizado neste semestre para 63 mil árvores)

Além disso, à ideia da devastação e ampliação do aterro somou-se a instalação de um incinerador, fato denunciado pela Frente Contra o Aterro e o Incinerador em São Mateus, hoje também atuante em Perus, área que sofre desde os anos de 1990 com o problema dos aterros e proposta de novo incinerador este ano

Hoje congelado por conta da mobilização dos movimentos que judicializou a questão, esse planejamento urbano que para nós é desorganização, reedita a ideia de São Mateus como depósito de lixo da cidade, sem horizonte de amanhã quanto a reuso, reciclagem e outras políticas para resíduos sólidos. 

Mais do que isso, nos faz rememorar a luta ambiental de São Mateus, encampada por mulheres dos movimentos de saúde, que brigavam por postos de saúde e hospitais no território, conseguindo garantir a Área de Preservação do Carmo, o Parque Sapopemba – nas áreas dos antigos aterros dos anos de 1980 – e reverberando na possibilidade do Parque do Morro do Cruzeiro. 

Porém, a única derrota desse movimento, o Aterro São João-CTL, nos ronda tal qual um fantasma que, ao persistir a vontade do poder público municipal em nos soterrar no lixo, pode fazer com que a visão de nosso mirante, patrimônio ambiental e de vida rural e lazer se torne miragem em um futuro não muito longínquo.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

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