Opinião

O destino da adolescência periférica num teste de gravidez

Hoje eu quero te contar uma história rapidinha para aquecer nossas reflexões sobre saúde na adolescência.

Leia também:

A história que pensei em contar foi do primeiro dia que fiz teste de gravidez na Unidade Básica de Saúde (que muita gente chama de posto ou postinho).

O ano era 1998, a região era o Grajaú e eu tinha 14 anos. Minha mãe estava grávida do meu irmão caçula e, numa conversa com a vizinha, ela contou que havia teste de gravidez gratuito no SUS. 

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.

Eu nunca tinha feito sexo com meninos, então obviamente eu não estava grávida, mas eu fiquei muito curiosa para saber como funcionava um teste de gravidez. 

Chamei algumas amigas da minha rua para irmos ao Postinho fazer o teste de gravidez. Como você sabe, geralmente adolescentes da nossa quebrada adoram andar em grupos de cinco ou mais pessoas e eu não era diferente. 

Juntei meu bando e fomos para a UBS. Lá fomos recebidas pelo guardinha que contou que os testes eram feitos às 8h da manhã e por ordem de chegada.

– Cheguem cedo, porque a fila é grande.

No dia seguinte a gente foi bem cedo, 6h30 já tinha gente na fila e nós ficamos lá esperando.

A gente estava com medo de algum vizinho descobrir que íamos fazer o teste de gravidez e contar para nossas mães. A gente nem transava, mas vai explicar isso para nossas famílias. Meu pai não ia acreditar!

8h o portão da UBS abre e o guardinha pergunta:

– Quem vai fazer teste de gravidez?

O cara gritou, mas mesmo com medo, a gente levantou o dedo.

– Aqui moço!

Ele nos entregou um copinho descartável daqueles de cafezinho e um pedaço de papelão escrito um número e disse que era a senha. Lá pelas 9h ou 9h30, a gente recebeu a orientação de que precisávamos fazer xixi naquele copinho e esperar na fila até nosso número ser chamado. Obedecemos.

Agora imagina a cena: cinco meninas de chinela de dedo, canela cinzenta, risadas mascarando a vergonha e segurando um copinho de xixi na recepção da UBS.

Lá pelas 10h a gente começou a colocar os copinhos numa mesa enquanto uma moça – que não se apresentou – colocava os pauzinhos do teste nos recipientes com a nossa urina.

Em quinze minutos ela começa a chamar senha por senha. 

Minhas amigas saiam rápido e eu, mesmo nunca tendo feito sexo penetrativo na vida, cheguei a pensar:

– Meu Deus, será que eu tô grávida?

Minha vez chegou. Entrei na sala e a moça disse:

– Elânia? Tá negativa. Tchau e até o mês que vem.

Aquele “até o mês que vem” passou batido por um bom tempo e eu nem me toquei do que aquelas palavras queriam dizer.

Como ela tinha tanta certeza de que eu voltaria mês que vem? Por que ela disse para mim que nos veríamos no próximo mês?

Muitas vezes, quebrada, as pessoas tratam adolescentes de periferia como se o destino já estivesse traçado. Esse menino é malandro e tá na cara que vai ser bandido, essa menina é assanhada, tá na cara que vai engravidar na adolescência. 

Tratam adolescentes de quebrada como pessoas com “cara de favelada”, a cara de quem tem o destino traçado, a cara de quem tem futuro limitado, a cara de quem é culpabilizada pela ausência de serviços e lugares que falem com a gente na nossa língua.

Colocam na adolescência periférica a culpa e desacreditam de meninas que, como eu, só queriam saber como funciona um teste de gravidez.

Ninguém, naquela época, era obrigada a saber que eu e minhas amigas só queríamos saber como era o teste, mas ninguém deveria ter dito que nos esperaria no próximo mês, afinal, obviamente ela vai voltar mês que vem. 

Ninguém me ofereceu camisinha para prevenir gravidez, o que recebi foi a previsão de um destino que não se cumpriu. Não engravidei na adolescência, mas muitas de minhas amigas, sim. 

A ausência ou escassez de espaços para conversar com adolescentes de forma respeitosa e transparente sobre sexo e sexualidade, faz com que não acessem informações e não saibam ou não queiram se prevenir de uma gestação não desejada ou Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).

Adolescentes de quebrada merecem liberdade e informação para construir suas próprias histórias e não seguir o modo automático de viver um destino traçado pelos outros. 

Me conta aí, o que passou pela sua cabeça com essa leitura?

Até a próxima. 

Saúde, quebrada.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Autor

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.