Opinião

O caipira também é periférico?

Aproveitando os festejos juninos e o dia do cinema nacional (19/06), chamo à reflexão a representação do caipira no cinema e na vida ao longo do tempo.

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Qualquer pessoa de quebrada em algum momento da vida já ouviu da família “deixa de ser caipira” quando a timidez era grande em ambientes desconhecidos. Esse é só um dos fragmentos de uma cultura que sobrevive estilhaçada entre becos e vielas, interiores e grandes centros, sustentando-se no meio urbano, na maioria dos casos, nos pequenos gestos, por isso é preciso ver para além dos preconceitos e das estigmas sociais para reconhecer essa cultura em nosso cotidiano. 

Preâmbulo histórico 

Antes de tudo se faz necessário dar alguns dados históricos importantes sobre a realidade brasileira para que possamos ter dimensão de como esse assunto é parte fundante da formação de nossa identidade. 

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A primeira e talvez a mais importante é que o Brasil foi um país de maioria rural até meados de 1950, ou seja, nos transformamos numa nação majoritariamente urbana apenas 62 anos depois que formalizamos a “abolição da escravatura”. 

Outra informação importante é que até o início do século 20 não tínhamos natal como hoje, e nossa maior festa popular era a Folia de Reis, que na maioria dos casos começava no dia 25 de dezembro e se estendia até o dia 06 de janeiro, com o ritual da cantoria de casa em casa e a bênção dos 3 reis magos, neste dia uma criança da cidade era escolhida para libertar um preso, era uma celebração cristã e também pagã. 

A história do Papai Noel vermelho e da árvore nevada veio do norte, tradição trazida pelos filhos do baronato tupiniquim que iam estudar na europa e achavam chique manter essa performance no calor tropical, mesmo não fazendo sentido algum. A publicidade também contribuiu com a mudança a nível nacional, devido a uma campanha em larga escala da Coca-Cola em meados de 1920.  


Entre os valores culturais importados pelos jovens ricos da elite brasileira, alguns outros bens de consumo e bugigangas também vinham na mala, a primeira câmera filmadora e os primeiros aparelhos de projeção estão entre estes objetos, sendo o jovem ítalo-brasileiro Afonso Segretto o primeiro a produzir imagens da baía de Guanabara em 1898, assim como realizar as primeiras sessões de cinema na sala Paris no Rio, que passou a ser um ponto de encontro da sociedade carioca.

Afonso Segreto

Mas do que os primeiros filmes tratavam? Quem eram estes primeiros cineastas? 

Nosso cinema nasce caipira

Entre os pioneiros do cinema brasileiro destacam-se dois caipiras, Humberto Mauro, que realizou o clássico “Ganga Bruta” e o folclorista Cornélio Pires, que em 1924 fez o filme “Brasil Pitoresco”. Uma viagem sobre o Brasil rural e os hábitos das pessoas pobres dos diferentes biomas do país. 

De Tietê – SP para Pernambuco, passando por várias paisagens com as lentes voltadas para as tradições populares do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Alagoas. 

Assim como a escrita de Cornélio, suas imagens são carregadas de paixão e respeito pelas pessoas do campo e suas artesanias, sua cultura e vida social. Este mesmo pesquisador foi responsável pela gravação fonográfica das primeiras duplas caipiras, sendo o revelador de uma tradição até então pouco divulgada pela indústria musical da época. 

O mineiro Humberto Mauro também fez registros importantes da cultura popular, revelando cantigas e folguedos caipiras, assim como os hábitos das pessoas do interior de seu estado. 

Mário Peixoto é outro importante nome que revelou em seu único filme a paisagem caipira/caiçara. “Limite” de 1931 é um romance experimental ambientado no litoral de Mangaratiba-RJ, provocando reflexões sobre a passagem do tempo e a condição humana. 

Não podemos esquecer também de Ozualdo Candeias, um caminhoneiro que adorava andar a cavalo e fazer filmes, dentre as várias pornochanchadas que rodou na boca do lixo, fez o celebre “A Margem”, e também em 1986, o clássico “As belas da Billings”, gravado nas margens da represa na região do Grajaú, periferia da zona sul paulistana.

Ozualdo Candeias

Tá, mas afinal quem são esses tais caipiras e o que estes sujeitos de São Paulo, Minas e Rio tem a ver com a periferia e os periféricos? 

Agroboy, bandeirante, trabalhador do campo…

Talvez os dois maiores símbolos da identidade nacional sejam o malandro do samba e o caipira dos interiores, não à toa duas simbologias advindas das culturas de roça, em alguns lugares ligadas umbilicalmente, vide o samba de viola do recôncavo baiano, ou o cururu paulista, ambos parentes do samba de partido alto. 

O cinema, os quadrinhos, a literatura e as artes plásticas trouxeram inúmeras representações de grande abrangência destes personagens, todas tem muito sucesso até hoje, e carregam de forma mais ou menos estereotipadas, vários elementos da identidade nacional. 

Você deve lembrar do Zé Carioca, do Chico Bento, da Carmen Miranda, do tio Barnabé, do Macunaíma, do Jeca Tatu, da Iracema, entre outros. 

A música sempre foi um marcador fundamental da nossa formação como povo, o pesquisador Ivan Vilela, relatou em seu livro “Cantando a própria história: música caipira e enraizamento” que um processo importante da catequese dos jesuítas para com as populações indígenas foi a música, em especial a música de viola, sejam as violas portuguesas ou as violas de buriti dos nativos, as canções desse projeto colonial foram fundamentais para a aculturação produzida nesse período. 

No cinema nacional alguns filmes contaram essa história, “Desmundo” de Alain Fresnot é um deles e fala do processo das bandeiras e das primeiras cidades coloniais no Brasil. 

O bandeirante é o personagem central dessa narrativa, a escravização indígena e os hábitos culturais da urbe nascente. Outro filme importante é o “Brava gente brasileira”, de Lúcia Murat, que entre outras coisas mostra a complexidade do personagem bandeirante, que mesmo mestiço de brancos e indígenas era também quem favorecia a escravização e o estupro colonial. 

Não há dúvida que o caipira se transfigurou com o tempo e sofreu mudanças da leitura redutora e preconceituosa desenvolvida por Monteiro Lobato. 

Cornélio Pires, já citado aqui, era uma das pessoas com um olhar mais respeitoso para as tradições populares, em especial a cultura caipira. 

Vendo toda a produção de Mazzaropi e alguns filmes da Vera Cruz sobre as multifacetadas formas de ser caipira, era possível ver nas entrelinhas as presenças de elementos da vida rural nas periferias do capital, lembro aqui do “Corinthiano”, e do “Jeca Tatu”, filmes de Amácio Mazzaropi, que revelam já na segunda metade do século 20 a migração dos interiores para a “cidade grande”. 

Entre erros e acertos, Mazzaropi reformulou com competência os textos racistas e xenófobos de Lobato, acrescentando seu olhar e sua capacidade dramática para dar humanidade às gentes dos interiores.

Caipiras de quebrada

Eu morei em diferentes periferias da zona sul de São Paulo, Jd. Herculano, Piraporinha, Rio Bonito, Jd Primavera, etc. Meu pai em nenhum destes lugares, por mais dura que fosse a paisagem, nunca abriu mão de um fogão de lenha, talvez você lendo esse texto também saiba dizer outra miudeza sobrevivente na sua família das reminiscências da tradição. Uma pequena horta de fundo de quintal, uma paixão por um radinho de pilha, o amor cotidiano pelos cachorros e demais criações, a paixão pela viola, sabedoria na construção doméstica, etc.

Antônio Cândido que era um grande pesquisador da cultura caipira disse que com o roubo de terras no interior, a especulação imobiliária e a precariedade do emprego, muitos caipiras foram para as cidades, e com seu perfil, seu grupo étnico e seus hábitos culturais o lugar onde puderam estabelecer pouso foram as periferias.

Você já encontrou algum deles com certeza, tocando violão ou sanfona num buteco do bairro, num mutirão de casas no fundão, ou passando de charrete ou cavalo na rua onde mora. Já se perguntou quem cria as galinhas que botam os ovos do carro do ovo? 

Enfim, a lista é longa, assim como os estereótipos, amamos as festas juninas, mas não nos questionamos sobre a pintura do dente, a calça menor que a altura do corpo, os remendos de costura nas roupas, todas formas pejorativas advindas do peso da pobreza e das limitações provocadas pela memória da colonialidade. 

Este mesmo peso que apagou também a questão racial levantada em inúmeras músicas das duplas pretas e pardas desde os anos 50, já ouviu “Preto Velho” de Tião Carreiro? Ouso dizer que foi o Negro Drama da época. 

Falei tudo isso pra te dizer que tem um cinema caipira de quebrada sendo feito bem perto de você, mas muitas vezes você não chega a ficar sabendo. 

Destaco aqui o curta “Ainda restarão robôs nas ruas do interior profundo”, de Guilherme Ribeiro Xavier, filmaço gravado junto dos muleque zika de roça da cidade de Assis-SP, vencedor do grande prêmio do Júri de 2022 no Festival Internacional de Curtas da Kinoforum.

Neste mesmo ano fiz um curta doc chamado “Sobre Pardinhos e Afrocaipiras” lançado no festival In-Edit Brasil, parte desta minha pesquisa de muitos anos sobre o tema. 

Mote de uma importante leitura caipira do nosso cinema de quebrada, parte de um entendimento de quem somos que não aceita simplificações e cobra uma vida que nos reconecte com nossas raízes, sem nos congelar no tempo, vide Matuto S/A e Gabeu, expressões da cultura caipira no Rap e no sertanejo (ou queernejo como diz o mesmo), inovando com os pés na ancestralidade, pois ainda que o cimento tenha coberto quase tudo nas periferias, temos ainda o coração, essa terra fértil sedenta por novas sementes. 

Acredite!

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

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