Monteiro Lopes e a tradição democrática do voto negro

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Se há um aspecto radical a ser destacado do processo da disputa de eleições democráticas, é o multi-pluralismo partidário. Entretanto, esse aspecto não torna em si o processo livre da presença de mecanismos discriminatórios.

É ao olhar esse percurso da consolidação da democracia brasileira que nos deparamos com conflitos intensos pela criação de formas violentas e elitistas da direção do futuro de organização política do Estado e do governo brasileiro.

É justamente essa trajetória do significado da participação democrática da disputa pelo poder que aproxima o passado autoritário com a banalidade do mal do presente.

A nossa história republicana é marcada por um violento percurso de golpes e fraudes na participação integral da sociedade civil no processo eleitoral, seja no acesso ao sufrágio universal (o voto) ou no acesso à disputa de cargos políticos.

Monteiro Lopes foi o primeiro Deputado Federal negro eleito na história republicana do Brasil, em 1909. Não apenas negro, mas que tinha a questão racial e trabalhista como parte prioritaria de sua campanha e de sua trajetória de luta política.

O que o torna tão especial não é apenas o fato de ser o primeiro negro eleito neste cargo, mas o conjunto de sua trajetória. Também não é apenas a exceção que confirma a regra.

Nascido em 11 de janeiro de 1867, em Pernambuco, Monteiro Lopes era filho de pai e mãe negros ex-escravizados e operários, Jeronymo da Motta Monteiro Lopes e de Maria Egiphicíaca de Paula Lopes.

No ano de 1885, apenas 3 anos antes da abolição, teve, felizmente, a oportunidade de ingressar no curso de Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de Recife. A luta abolicionista marcou sua trajetória em defesa dos direitos e justiça para “pessoas de cor” e oprimidos na sociedade brasileira.

Tornou-se bacharel em 1889, 1 ano após a abolição e apenas 14 dias depois da proclamação da república, que viria a ser parte importante de sua vida.

Sua trajetória é tão significativa que poderia ilustrar qualquer obra ficcional de modo brilhante. Superando expectativas e obstáculos da sociedade de sua época, Lopes teve um currículo invejável e alcançou notoriedade por onde passou.

Ao sair de Pernambuco se estabelece na cidade de Manaus (AM), e foi cogitado para tornar-se chefe de polícia, mas não assume o cargo, o que não se sabe ao certo o motivo, mas se havia divergências de natureza política.

Assumiu o cago de Promotor Público e logo depois de Juiz de Direito. De pele escura, sua presença era motivo de incômodo, buscando novos rumos, vai para cidade do Rio de Janeiro (RJ), em 1894.

Lopes, abre um escritório na cidade, atua como advogado para “pessoas de cor” e trabalhadores. Passou a ser chamado de “Advogado do povo”, “Paladino dos operários”, entre outras alcunhas, é reconhecido como liderança por organizações operárias e grupos de organizações negras.

A política institucional parece um atrativo natural da luta por justiça social. Se isso é de certa forma verdade, não seria diferente para este homem. Antes de tornar-se deputado, ele havia sido eleito para um cargo equivalente a vereador na cidade do Rio de Janeiro.

É justamente nesse momento em que ele decide partir para a vida pública e acontecem movimentações racistas para degradar a sua imagem simplesmente pelo fato dele ser negro, mas principalmente por ser “muito negro”, “negro demais para vida pública”.

Há certo paralelismo conceitual do problema da primeira república e o voto com a eleição deste ano. No caso, na tentativa da campanha bolsonarista “provar um processo justo” de contagem de votos, buscaram fraudar o processo eleitoral.

Mas é claro que aquele período é marcado por outras formas de fraude – e aqui chegamos a grande façanha de Lopes.

Haviam diversas restrições ao voto, que era direito apenas a homens a partir dos 21 anos, pessoas analfabetas também estavam excluídas e o voto não era secreto, o que abria margem para coação e violência política na auditoria dos votos.

Os votos eram barganhados entre as elites que participavam da disputa eleitoral e os coronéis regionais coagiam eleitores através de violência e troca de favores (o voto de cabresto), e mesmo no preenchimento de cédulas com nomes de pessoas mortas, anafabetos, crianças, etc., pelos “mesários” das seções eleitorais.

Havia também uma instância intermediária, caso o plano de eleger os candidatos da elite não funcionasse. A Comissão Verificadora de Poderes, que tinha o poder de fazer recontagem dos votos e impugnar candidaturas, num cenário em que o voto não é secreto e em cédulas que precisavam ser preenchidas por cada eleitor.

As fraudes formavam um “kit eleitoral” de sucesso infalível para a elite. Mas naquele ano de 1909, Monteiro Lopes despontava como um grande mobilizador e liderança política rumo ao congresso.

A capital da república do início do século XX estava marcada por um crescimento demográfico gigante nos últimos 40 anos daquele período (1870-1910).

A formação de favelas, a falta de absorção do mercado de trabalho para negros (migrantes) e imigrantes, problemas de saneamento básico, crises de saúde pública com epidemias e, sobretudo, das movimentações de classe, nascem a ânsia por representação e mudanças políticas que são identificadas no “Advogado do povo”.

O “Advogado do povo”, o “Paladino dos operários”, provoca o medo das elites e logo recebe diversos ataques racistas da imprensa.

“Vai ficar tudo preto”, pouco mais de 100 anos, isso soa como uma profecia a ser cumprida. 

Houve tentativas de fechar zonas eleitorais, roubo de urnas e segundo Domingues, nem Monteiro Lopes esperava o resultado que teve na eleição. Teve 2.337 votos, sendo o quinto candidato mais votado do Rio de Janeiro, ainda assim, restava passar pela “comissão de fraude”.

Sua candidatura foi impugnada, entretanto, como era de se esperar. Mas ele teve o apoio de jornais da época, organizações civis de classe e de “homens de cor”, e figuras como Rui Barbosa e Pinheiro Machado. Não só assumiu seu mandato, mas reafirmou na câmara que ele era a afirmação do povo negro e celebrou sua vitória no dia 13 de maio.

Não é o objetivo deste texto discutir cronologicamente a história do voto negro e trazer dados estátiscos, mas apontar rumos a partir da lição histórica de personagens resilientes como Monteiro Lopes.

A maioria expressiva de votos de negros, dos mais pobres e da periferia em geral, em Lula no cenário nacional e em Haddad no estado de São Paulo, apontam que há um compromisso do perfil desses eleitores com pautas sociais e democráticas, não apenas com “programas assistencialistas”, mas com a busca de dignidade sem a violência como a própria história revela.

Entretanto, o Brasil precisa de protagonistas na política como Monteiro Lopes, Antonieta de Barros, Carlos Marighella, Minervino de Oliveira, Benedito Cintra, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales, Luiza Helena de Barros, entre tantas outras para assumir o direito também de disputar o futuro do país na disputa para presidência nos grandes partidos e quebrar o ciclo com a tradição de homens e mulheres brancas para o cargo.

Precisamos de mais Léo Péricles, Vera Lúcia, Douglas Belchior, de mulheres negras como na Bancada Femista eleita para Alesp, de Erika Hilton, Taliria Petrone, eleitas para o congresso. Precisamos de lutadores como Renato Freitas eleito deputado para Alep.

O projeto de Bolsonaro não representa apenas um projeto neo-fascista com apelo de intensificação do escárnio e da glamourização da violência, mas, sim, a continuidade do projeto fundamentalista religioso, militar e elitista nascido da escravidão e que fundou a república.

A mentalidade escravagista não é apenas o cerceamento da liberdade e o trabalho forçado, mas ela se realiza no consentimento da violência, do ódio e da destruição do outro como método. 

Machado de Assis, ao ironizar as movimentações pelo sufrágio universal que proibia analfabetos de votar e culminou na Lei Saraiva (1881), diz:

“70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber porquê nem o quê. Votam como vão à festa da Penha – por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado”.

Machado de Assis.

Não é o futuro que está em jogo nesses últimos anos, é um passado vivo e pujante. A democracia é um refugiu utópico que ainda não vive plena e é surrada e sabotada pela república oligárquica, elitista e militarizada brasileira.

Contudo, a história de Monteiro Lopes, como de tantos personagens da luta democrática por justiça social e econômica, nos colocam de frente para a questão de Machado. Devemos estar sempre prontos para tudo.

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