Há alguns meses, veio a público a triste história de Érika, que tentou pegar um empréstimo em nome de seu tio Paulo, falecido pouco antes de chegar ao banco. Mais recentemente, o filho do ex-boxeador Maguila, durante o velório do pai, defendeu a madrasta, Irani Pinheiro. Ela, que viveu com o atleta por 40 anos e cuidou dele até o fim de sua vida, passou anos sendo acusada de estar interessada em sua fama e dinheiro.
Essas histórias, e o tema de redação do último Enem, trazem para fora do circuíto feminista o debate sobre trabalho de cuidado.
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Também chamado de trabalho reprodutivo (e às vezes até de trabalho improdutivo), trabalho de cuidado é tudo o que envolve a reprodução e manutenção da vida. Aquilo que a gente cresce ouvindo ser “coisa de mulher”: cuidar, lavar, limpar, cozinhar, ir à feira e ao mercado.
A isso, se soma também todo o trabalho administrativo de ir ao banco, pagar contas, agendar e acompanhar consultas médicas, tratamentos, vacinas, reuniões e tarefas escolares; incluindo planejar, levar e buscar nessas e de quaisquer outras atividades, ou ficar em casa com crianças, pessoas idosas, doentes ou com deficiência, para que não estejam sozinhas. Uma lista (e uma carga mental) infinita.
O trabalho de cuidado mantém a vida e carrega o mundo nas costas.
Nas quebradas do Brasil, majoritariamente negras, as meninas já crescem enredadas na função. Aptas a faxinar uma casa inteira muito antes dos 15 anos, são acusadas de preguiçosas no primeiro protesto. Os meninos, quando muito, são convocados a “ajudar” em pequenas tarefas – lavar ou guardar a louça, colocar o lixo para fora, mas nunca têm a responsabilidade pelo cuidado realmente dividida.
Sem saber lavar banheiro, cozinhar feijão ou quantas bananas comprar para alimentar a família por uma semana, passam dos cuidados das mães e irmãs diretamente aos cuidados das esposas. Muitos crescem com uma enorme dificuldade em se tornar adultos autônomos e funcionais. Incapazes de ir à feira sozinhos, acusam as mulheres de gastadeiras.
Quantas vezes você, mulher, foi almoçar na casa de alguém e te pediram para colocar a comida no prato pros homens da sua família? Eu, muitas.
O trabalho de cuidado gera até 39% do PIB no mundo, e chega a 13% no Brasil. Além de ser responsável não apenas pela reposição de mão de obra, mas também por garantir a sobrevida da já existente. Tudo isso, muitas vezes, de maneira gratuita ou altamente precarizada.
De um lado, as empregadas domésticas foram uma das últimas categorias a receber direitos trabalhistas e, assim como as cuidadoras, mesmo quando formalizadas, é comum que morem nas casas onde trabalham, com jornadas sem limites de horário, e até que vivam em situação análoga à escravidão ou sejam submetidas a abusos sexuais. Duas categorias profissionais compostas quase exclusivamente por mulheres negras e periféricas, importante lembrar.
Leia também: “Eu já não sou mais a mesma”: trabalhadoras domésticas relatam desgastes em jornadas de trabalho
Por outro lado, a maioria das cuidadoras informais depende da renda de maridos, filhos ou das pessoas de quem cuidam – uma porta aberta para os mais variados abusos e vidas muito precárias. Várias delas vendem lanches, doces ou cosméticos em casa, cuidam de crianças da vizinhança. Toda rua tem uma tia do geladinho. Como esses trabalhos não têm contribuição à previdência, é difícil prever do que vão viver quando forem idosas.
No Rio de Janeiro, a ONG Favela Compassiva, atua na Rocinha e no Vidigal, contando com voluntariado que junta forças e tenta amenizar a ausência de políticas públicas, visitando pessoas doentes em casa. Embora bonita, essa iniciativa impõe a pergunta: por que essas pessoas não recebem visitas de enfermeiras ou auxiliares de enfermagem assalariadas pelo SUS? Pessoas com direitos trabalhistas, para dar banho, medir a diabetes, dar a medicação ou fazer curativos com estrutura e equipamentos adequados? Por que não existe um salário fixo para que as pessoas possam se dedicar ao cuidado de seus entes queridos quando necessário?
Em uma reportagem recente sobre a ONG, vemos a brutalidade da total ausência de políticas de cuidado para pessoas idosas. Uma das pacientes morava sozinha, estava deitada quando a equipe chegou, e ficaram sabendo que ela não consegue tomar a medicação sem ajuda. Outra, só tinha a filha com deficiência como apoio. Ambas moram em um morro, quem faz as compras para elas? Quem cozinha e lava as roupas delas? Todas as pessoas que cuidavam eram mulheres, as que pareciam não ter nem quem as ajudasse nem a tomar banho, também.
As primeiras a cuidar, são também as menos cuidadas.
Mulheres são 6 vezes mais abandonadas quando adoecem. Antes que suas crianças com deficiência completem 5 anos, cerca de 78% das mães são deixadas pelos maridos. Talvez você também tenha reparado que as acompanhantes nos hospitais são sempre mulheres. Quem mais se sente na obrigação de largar tudo para cuidar de uma pessoa doente? E tudo quer dizer tudo mesmo: abandonar os estudos, o trabalho, mudar de casa, trazer a pessoa para sua casa. Fazer malabarismos, se adaptar para dar conta de um cuidar que absorve todos os âmbitos da vida.
Debaixo de tudo isso, ainda tem a culpa. Culpa por não ter feito mais ou por não ter percebido antes algum sintoma. Culpa por um acidente doméstico que se complicou. Culpa por sentir cansaço, por desejar fugir da responsabilidade que caiu em suas costas, por desejar poder fazer suas próprias escolhas. Culpa por querer ter sua vida de volta.
Na vida adulta, aquele “preguiçosa” ouvido na infância ecoa em um olhar silencioso que diz: Mas se você não cuidar, quem é que vai?
Politizar o cuidado é também um esforço de imaginação política para um mundo que respeita mais tanto as mulheres, quanto quem precisa de cuidados.
Esse não é um debate novo. Se você quiser saber mais sobre os movimentos de politização do trabalho de cuidado, dê uma olhada em O Ponto Zero da Revolução, de Silvia Federici, neste vídeo educativo do coletivo argentino Ecofeminista ou na página da Associação Yo Cuido, do Chile.