Gambiologia e a inovação das estratégias periféricas de sobrevivência

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O “jeitinho brasileiro” dito muitas vezes de forma irônica ou pejorativa no dito popular é, na verdade, uma ciência tão potente que sustenta uma parte da cidade em que o direito ao urbano é negado. A gambiarra é a capacidade do improviso diário, de se adaptar às adversidades de um contexto de ausências.

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Foto: @Juhnavarzea

A formação dos territórios periféricos se deu a partir do deslocamento de milhares de pessoas, em busca de melhores condições de vida. Seja pela intensa migração do campo para cidade, seja pelos constantes processos de expulsão das áreas centrais, historicamente providas de recursos, às margens da cidade se mantém exclusivamente da sabedoria popular, já que permanecem esquecidas ou mesmo negligenciadas pelos olhos do Estado.

Quem vê São Paulo da ponte pra lá, a cidade mais rica da América Latina, com prédios comerciais espelhados e tecnologia de ponta, nem imagina que toda noite falta “água da rua” na quebrada – isso quando a Sabesp chega! Antes disso, mesmo sem acesso ao ensino formal, o conhecimento sobre o solo é suficiente para abrir um poço e garantir água para muitas famílias. Mas o “b.o” não para por aí, a ineficiência governamental é contínua e se ramifica na escassez de vários outros serviços básicos.

E nós podemos citar muitas coisas: É água, é luz, a internet que não funciona, sacola no pé pra não sujar o tênis pra ir pro trampo, o cuidado com as cria, é o busão que só passa de meia em meia hora, conseguir entrar no trem lotado, é o alimento cada vez mais caro que obriga a dona de casa a eliminar itens da lista de compras, é a rua escura, é a violência… É tanta coisa, que às vezes a gente acaba naturalizando diversas situações pelo simples fato de não ter outra referência: – “Não falta água no final do dia na sua goma?”

O “jeitinho brasileiro” dito muitas vezes de forma irônica ou pejorativa no dito popular é, na verdade, uma ciência tão potente que sustenta uma parte da cidade em que o direito ao urbano é negado. A gambiarra é a capacidade do improviso diário, de se adaptar às adversidades de um contexto de ausências.

Esta gambiologia, diferentemente de outras ciências, é transmitida de forma oral, no contato com o outro, de geração em geração e assim como em outros conhecimentos, é preservado e aperfeiçoado ao longo do tempo. Isto é, além de estratégias para desviar dos problemas, a periferia cada vez mais protagoniza formas de enfrentamento dessa realidade.

Nesse sentido, a oportunidade e o acesso à informação são verdadeiras incubadoras. Conforme pessoas periféricas ocupam os espaços, semeiam novos caminhos para cada um dos nossos. Exemplo disso é o próprio acesso ao ensino superior. Nos últimos anos, com programas como ProUni, SISU e a política de cotas vemos, aos poucos, um ambiente totalmente elitizado se diversificar. Porém, a lacuna entre a escola pública e a universidade ainda é grande e para isso, torna-se necessário um esforço coletivo. Nesse caso, os cursinhos populares se multiplicam pelas margens.

Mas o que isso tem a ver com gambiarra? Ora, gambiarra não é um trabalho feito com peças alternativas perante a falta de algo essencial? Pois bem. Não é segredo pra ninguém a falta de infraestrutura e recursos na educação básica pública. Também são sabidos os altos custos de cursinhos particulares, principalmente pra gente, que às vezes falta grana até pra condução. A escolha de um lugar comum (escola, ocupação, etc) e a união de profissionais voluntários, garante hoje o acesso de milhares de estudantes no ensino superior e, esta entrada, modifica (ainda que lentamente) as estruturas dessa sociedade excludente.

O cursinho popular é apenas um exemplo. Podemos citar aqui os coletivos periféricos artísticos, associações de moradores, mutirões no bairro e muitas outras iniciativas do cotidiano das margens. Desde a lombada feita pelos moradores pra prevenir acidentes até o jogo de futebol que arrecada alimentos na quebrada, são mobilizações populares potentes, mas que não podemos esquecer que cumprem um dever do estado. Sem recursos, com grandes demandas e muitos empecilhos diários. Gambiarra é o que não é o ideal, mas é eficiente.

Isso não quer dizer que estas ações não exerçam esse papel com maestria. Ainda no exemplo dos cursinhos, tais espaços não transmitem apenas conhecimentos sobre vestibular. É ali que muitos jovens vão começar a se engajar e politizar, acessar arte e cultura e encontrar nessa ferramenta uma forma de expressão e, assim, construir um sentimento de pertencimento e comprometimento de florescer transformação em cada canto da quebrada.

Em minha passagem pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias, lembro-me de uma fala do Anderson Meneses sobre o trabalho da associação “Nosso principal objetivo é que um dia a Agência Mural não precise mais existir, que o jornalismo seja tão diverso que não seja necessária essa iniciativa”. É sobre isso. A gambiologia é ponte! Que futuramente estejamos criando novas possibilidades de vivência no mundo e não renovando estratégias de sobreviver em uma parte da cidade. Mas ainda assim, como disse Milton Santos: 

“O mundo é formado não apenas pelo que existe, mas pelo que pode efetivamente existir”

Cada ação social, por menor que seja, cria essa realidade. Que isso nos impulsione a continuar!

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