Opinião

Drogas e aborto: por uma política de cuidado

A criminalização beneficia traficantes e agrava os problemas reais causados pelos abortos inseguros e uso abusivo de drogas.
Por:
Shisleni de Oliveira-Macedo

Leia também:

No mês de junho, assistimos a discussões muito importantes no Brasil sobre a criminalização do aborto e a Lei de Drogas. Infelizmente, na maioria dos casos, a conversa começa com “não estamos discutindo a descriminalização” ou “não está em discussão a legalização”. E, para ambos os temas, isso é uma grande pena.

Não é nenhum segredo que o atual sistema de guerra às drogas é ineficiente. Ele colabora para o encarceramento em massa baseado em raça e território, e para um altíssimo índice de mortes violentas (em especial de jovens homens negros). Ao mesmo tempo, a criminalização do aborto resulta no elevado índice de abortos inseguros, com uma morte a cada dois dias, à violência obstétrica e ao consequente medo de procurar ajuda médica. 

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.

Em 2022, mais de 150 mil mulheres foram internadas no SUS por complicações de abortos inseguros e estima-se que pelo menos meio milhão de abortos sejam realizados no Brasil todos os anos.

Trago todos esses dados (e links) para dizer o óbvio: a proibição não impede a realização de abortos, não evita nem trata o uso abusivo de drogas, não protege as gestantes, nem protege nenhuma família. 

O que a criminalização faz é favorecer o tráfico, o mercado de armas e o aumento da violência.

No país, poucas são as políticas públicas de reabilitação para quem faz uso problemático de drogas. O que vemos é a proliferação de comunidades terapêuticas religiosas com poucos ou nenhum profissional especialista no tratamento de desintoxicação e muitas acusações de tortura e abusos sexuais

Mas, se esse viés de encarceramento e criminalização não dá resultado, o que aconteceria se ao invés de tratarmos esses temas com políticas criminais, os tratássemos com políticas de saúde pública? 

Para dar apenas um exemplo aqui do lado: na Argentina, após a legalização do aborto e a implantação de uma política de educação sexual integral, a morte materna e de gestantes caiu 43%, enquanto a gravidez na adolescência teve uma redução de mais de 40%. 

No caso das drogas, já existem experiências positivas que mostram que, ao invés de marginalizar as pessoas usuárias e prender por quantidades mínimas, poderiam ser criados espaços para o uso seguro, com insumos desinfetados – evitando a contaminação por uma série de doenças – e apoio profissional em caso de crises, overdoses e na busca de tratamento para quem quer deixar de usar drogas. Tudo isso articulado com a inserção em programas de assistência social, quando necessário, com um plano pensado caso a caso. Isso tudo é redução de danos.

Em poucas palavras, a redução de danos é uma postura ética e política que propõe uma reflexão ampliada sobre práticas que podem causar danos, investindo no acesso à informação e cuidados para a redução desses danos. 

Por exemplo: quando alguém te diz para beber um copo de água e/ou se alimentar a cada tanto de cerveja, está cuidando para diminuir os efeitos ruins que o álcool pode trazer ao seu corpo. Isso é redução de danos. É uma política e uma prática de cuidado que incentiva estratégias de proteção e mudanças de atitude em situações de risco e vulnerabilidade. 

No entanto, essa postura exige que olhemos para drogas e aborto (nos exemplos que estou usando aqui) sem moralismos e que tenhamos respeito pela autonomia corporal de cada pessoa.

De uma perspectiva da redução de danos, a descriminalização do aborto poderia zerar as mortes por procedimentos inseguros, com todas as pessoas podendo acessar abortos seguros pelo SUS ou na rede privada; poderia aumentar a cobertura de planejamento familiar, já que um método contraceptivo de longa duração poderia ser oferecido após o procedimento; e poderia inclusive contribuir na identificação de situações de violência intrafamiliar.

Acolher, ao invés de criminalizar, abriria um espaço para a proteção integral, para que a pessoa em situação de vulnerabilidade – e sua família – possa ser cuidada.

Quando o foco é apenas no punitivismo, a única porta que se abre é a da prisão e essa não cuida da pessoa viciada, nem da que abortou de maneira insegura, não protege sua família, não acaba com o tráfico de drogas e nem de medicamentos. 

Não seria mais eficaz trabalhar com uma perspectiva de redução de danos, criando uma política de cuidado, ao invés de apenas investir em punitivismo? Até um ministro do STF reconheceu o problema de desigualdade social e racial que envolve a política atual de drogas (te convido a tirar uns minutos para ver este vídeo sobre como este mesmo ministro lidava com o tema há alguns anos atrás).

A criminalização não cuida de ninguém, ela só beneficia os traficantes. E estamos falando aqui de quem carrega drogas de helicópteros e Hilux, tranquilão, morando em casas cheias de armas, em condomínios fechados, em bairros onde a polícia não entra sem mandado, e não dos moleques que morrem jovens, vendendo droga sem camisa nas biqueiras das quebradas. 

Investir em uma política de cuidado seria, isso sim, trabalhar em prol das famílias brasileiras e contra a atual política de morte.

*Se quiser saber mais sobre redução de danos e política de drogas, recomendo que você assista à entrevista da Nathália Oliveira, aqui no desenrola e veja a série Que Droga é Essa, do Justificando. Acompanhe também a Rede de Feministas Antiproibicionistas e a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Autor

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.