Oprê! E aí, como você está? Eu passei cerca de 1 ano pra poder refletir sobre minha escrita musical e buscas expressivas na música. Essa demora não se deu apenas por dificuldade de concatenar as ideias, mas por uma busca de poder sentir, passar pelo luto ou me ver nele e depois dele. Esse texto aqui contém gatilhos, esteja avisade se está correndo os olhos por aqui nessa humilde coluna.
Estou com 43 anos e canto e componho canções autorais desde os 6 anos de idade. Em 2020 iniciei as gravações do meu primeiro EP autoral, o “Depois” (selo Pôr do Som 2023). Do lançamento do disco, que saiu em 23 de Agosto de 2023 até aqui, tenho encontrado em mim e na trajetória do disco mais do que eu conscientemente havia escrito ou planejado, talvez isso seja natural, dados os temas…
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O disco, mesmo sendo pequeno, singelo, com apenas 4 canções, tinha a pretensão de tratar sobre o tema futuridades, sobre saúde mental e sobre o luto, este último tema que eu acho que eu mais subestimava e que depois de ser provocado a escrever sobre isso aqui e passar por diversos medos pra concretizar essa escrita, resolvi encarar e rascunhar as palavras que seguem.
Poéticas periféricas e pretas
Sou um homem preto, periférico, nascido no Bexiga. Eu e minha família passamos por diversas expulsões, empurrões e “chega pra lá” que a cidade de São Paulo reserva não apenas a mim, mas a várias corpas dissidentes e especialmente se essas corpas forem de pessoas pobres.
Aos 7 anos meu pai me falava: “Não se engane meu filho, você é preto. Precisa fazer melhor que os outros, ter os dentes cuidados e andar sempre com os documentos por onde vai”.
Esses alertas vindo de um pai baiano e retinto para um filho fruto da mestiçagem, dava pra mim a toada de como seria o século XX para pretes das periferias.
Na minha infância ganhei de meu pai o primeiro livro do Clóvis Moura, a cartilha “O negro no mercado de trabalho”, com ilustrações de Maurício Pestana. Essa formação influencia muito a minha poética e a minha atuação cultural até os dias de hoje.
Na minha família, 3 homens negros foram assassinados. Vários de nós, homens negros nascidos no século XX, e mesmo agora, passamos por drogadição, alcoolismo e sofremos diariamente violência policial e a sistemática ocultação e/ou supressão das nossas sensibilidades e subjetividades. Meu pai e minha mãe, e toda minha família e a maioria das famílias periféricas sofreram e sofrem um bocado com aluguel, dificuldades de transporte e com o parco acesso a políticas públicas dignas, decentes, justas.
Eu sou ex viciado em cocaína e convivo com a depressão desde o final dos anos 2000. Muitos acontecimentos me marcam e acho que fazem parte da escrita afetiva que desembocou no EP “Depois”, alguns deles aqui seguem:
Em 2016 me aproximei do dramaturgo e hoje amigo Jé Oliveira, que naquele momento preparava a escrita da peça teatral “Farinha com Açúcar”. Em sua pesquisa sobre masculinidades e a subjetividade de homens negros ele me entrevistou. Foi uma experiência importante, tanto como desabafo, para rever alguns passos, quanto para pensar possibilidades e conhecer outras histórias como a de Akins Kintê, Allan da Rosa, Renato Ihu, Salloma Salomão, dentre outros entrevistados para a construção da peça.
Naquele momento foi muito impactante olhar novamente para caminhada da minha família e refletir sobre sonhos, amores e sobre a morte tão presente no nosso dia a dia: a morte como medo, como possibilidade provável, como se ela se avizinhasse logo ali, na esquina dos vários bairros pobres onde mora a maioria de nós.
Essa peça foi muito marcante pra mim, por vários motivos, entre os quais, um dos grandes, o fato da peça ser tributária a obra dos Racionais Mcs.
Em 2017, a Zona Leste e os movimentos culturais da cidade perderam um grande poeta, ator, performer, a bixa preta Daniel Marques Sundiata, co-fundador do sarau “O que dizem os umbigos?”, do coletivo Bicho Solto e participante de vários movimentos de cultura como Rede Livre Leste, Fórum de Cultura da Zona Leste, Movimento Cultural das Periferias, dentre outros.
Com a passagem de Daniel eu perdi um dos meus melhores amigos, com quem confidenciava minha luta contra a depressão, as dificuldades de viver como trabalhador da cultura e minha vontade de viver de cantar. Daniel foi e é marcante, como foi e é marcante a trajetória das poéticas periféricas dos saraus e dos movimentos de cultura dos anos 2000 a meados de 2018. Em algum momento a cena cultural irá reconhecer várias das sementes plantadas nesse tempo. Sou testemunha.
No meu disco, no EP “Depois”, quero feminagear/homenagear Daniel Marques e as lutas desse período, uma forma de cantar o que pensamos, sentimos, passamos e com o que sonhamos nós que sobrevivemos ao sumidouro de gente que é o território onde vivemos.
Os futuros
No último ano, após o lançamento do disco, tendo lido muito, refletido e passado por um período de acompanhamento psicológico (na terapia) e espiritual (no candomblé) que tem me feito rever mais alguns passos. Esse tempo me permitiu reconhecer-me como um sobrevivente de suicídio, não apenas por váries amigues terem partido ao longo da minha vida, mas pela relação sensível que homens pretos tem com a passagem pro outro plano, pro Orun.
Bem, você já deve ter lido em pesquisas e textos por aí, que homens negros são as vítimas mais prováveis desse tipo de evento traumático, evento que afeta além da pessoa, um círculo íntimo, amigues e familiares da pessoa que faz a passagem. As pessoas que fazem parte desse círculo próximo são sobreviventes de suicídio, mesmo que nunca tenham atentado contra a própria vida.
Infelizmente nossa sociedade tem vários tabus e não fala abertamente sobre isso, seja entre nós ou nos meios de comunicação, o que faz com que a solidão nos leve mais e mais pessoas, que se sentem incompreendidas ou sozinhas em suas emoções e sentimentos.
Em suma, tenho certeza de que não deveríamos falar sobre isso apenas em um mês ou dois do ano (me refiro ao Setembro ou Outubro amarelo). Meu primeiro disco me permitiu cantar sobre isso, direta e indiretamente. Tem me feito bem esse movimento de falar/cantar/escrever, mesmo que nem todas as pessoas percebam os assuntos mais profundos e tratados de forma indireta em “Depois”.
Mesmo eu tendo que conversar muito por aí, ler “O que é o luto?” do Renato Noguera (recomendo muito) e passar por várias etapas internas para poder pensar e sentir melhor sobre.
Eu fiz uma promessa a Daniel Marques em seu leito de morte. Eu afirmei a ele (e a mim) que irei viver de cantar o que eu quero, porque gosto da máxima: “Eu escrevo o que eu quero”, do Sul Afrikano Steve Biko.
De várias formas o EP “Depois” é uma afirmação da minha permanência nessa terra, afirmação da minha sensibilidade, mesmo que o futuro reserve muita ansiedade, incertezas e desejos não correspondidos.
Firmar os pés na esperança e perseverança por novas manhãs tem sido o que decidi pra mim. Espero que isso possa ser uma premissa a dividir com pessoas que se pareçam comigo ou que passaram por algo parecido na vida.
Nesse tempo violento em que vivemos, me questiono e canto sobre a possibilidade de se vestir de ternura e procurar em si e nos outres, os quilombos possíveis, de afeto, transformação e viradas, afinal, o futuro é incerto, mas há coisas que precisamos afirmar para poder firmar utopias, feitiços do tempo que afetem a nós dentro e fora de casa, por dentro e por fora de nós.
Acredito, tenho FÉ nisso para poder abrir a janela e ver o sol.
O “Depois”
Algumas escolhas pro disco não são só estéticas ou poéticas, mas sim culturais (alguns diriam políticas). Eu adoto paridade de gênero nos meus trabalhos e opto por trabalhar com pessoas pretas, preferencialmente periféricas.
Eu não acredito num bom futuro no qual as pessoas se fechem as possibilidades de outras contribuições, então mesmo dirigindo artisticamente o trabalho, gosto de contar com contribuições que vem para compor a “estória” do disco.
Nesse sentido, destaco a direção musical do Ravi Landim, direção vocal de Estela Paixão, produção da Obara Produções (obrigado Paloma), as artes da capa do disco são construídas a partir de um quadro da Lê Nor, tem a pintura corporal de Juliana dos Santos, adereços de Ana Pimenta, sessões de foto de Joyce Prado, animação de Alê Naslim no clipe de “Flor de Baobá” e finalização de arte de capa da maravilhosa artista Marisa Soou.
Mais recentemente tive a oportunidade de gravar o clipe da faixa título “Depois”, com direção de Matheus Alencar e uma equipe pretíssima, jovem e periférica. Esse clipe, a ser lançado nos próximos meses, é gravado em película super-8 e ganhou menção honrosa na 11° edição do Festival Super Off, realizado no Centro Cultural São Paulo.
O EP “Depois” deu trabalho a quase 40 pessoas pretas e por isso tendo a trabalhar com pouca intervenção eletrônica nos meus trabalhos. Ter pessoas por perto tem sido importante.
Entre as participações especiais, o ator e premiado dramaturgo Jé Oliveira, que participa da faixa-título. Ao lado dele, na mesma composição, o pianista Fábio Leandro, do Aláfia.
Em “Áfrika”, o brilho da cantora e preparadora vocal Estela Paixão, também integrante do Aláfia. Neste mesmo single, François Muleka traz suas texturas e linhas de contrabaixo.
Para fechar o time de participações que compõe a canção “Áfrika”, Luedji Luna conclui poeticamente a necessidade de afirmarmos futuros que também são retornos. Amo esse dueto.
As faixas
“Flor de Baobá”. Começamos o disco como num quarto, ouvindo o canto ao violão de uma forma melancólica e crua e com uma sonoridade latino americana. Ao longo da canção vão soando solos de violão, palmas e a voz se alterando passando para uma ternura, um acalanto quilombola. A levada da canção se liga afetivamente com a canção “Saudade”, de Chico César e Moska, canção interpretada por Maria Bethânia.
“Sundiata”. Samba exaltação delicado feito como homenagem/feminagem póstuma. Numa escrita inspirada em Gonzaguinha, qualidades e características de Daniel Marques Sundiata e de seu orixá vão dançando verso a verso da canção. A progressão dos acordes, das percussões, ao fim alçam voo num coro vocal típico de sambas e de jongos, em melodiosos “laiá laiás”.
“Depois”. Clímax do disco. Uma introdução orquestrada, com piano, violão, viola de arco e clarinete chegam aos ouvidos para mostrar sonoramente as belezas de um futuro idealizado, lírico, belo e solar. Muitas dúvidas para o futuro vão sendo cantadas, muitas delas típicas do pós-pandemia. Ao fim da canção, o que começou com dúvidas, termina afirmando “a mata, o mar e os amores” no peito, no coração, em si. A letra dessa canção se liga afetivamente com a “Cair em si”, do Djavan.
“Áfrika”. Como uma cena final de um filme, o dueto com Luedji Luna é a sentença final do disco sobre como as memórias do passado, presente e futuro podem servir para garantir o bem viver e as futuridades para as pessoas pretas das periferias do mundo. O coro vocal e as melodias, as pausas e as progressões de violão, o swing do baixo, das percussões ecoam o sagrado e a centralidade do tempo para o retorno simbólico as afrikanidades plurais.
Saravá as futuridades e possibilidades do “Depois”!