Dentre todos os problemas que o povo preto, periférico e trabalhador enfrenta, na minha perspectiva, o mais complicado de se perceber é o autoconhecimento e consequentemente, o autocuidado, porque se olhar e entender o quanto temos o direito de receber cuidado, e que não seja só o estético. Onde precisamos entender que podemos nos ver e gostar do que vemos não só no espelho, mas principalmente de se olhar num espelho interior e gostar do que se vê e o que sente sobre si. Curar demasiadas feridas, que podem ser cuidadas e tratadas de diversas formas. Ainda precisamos quebrar diversos paradigmas.
O autocuidado está sendo uma palavra emergente. Podemos perceber que muito se tem falado sobre esse tema, mas porque agora, vocês já se perguntaram? E ainda assim, percebo que não compreendemos o seu real sentido prático na rotina diária.
O que é o cuidado?
Ao longo dos anos que venho me dedicando a cuidar de pessoas, a resposta parece simples. Sou cuidadora, ou melhor, sou mulher, só por este fator já nasci com essa tarefa. Isso já está dado numa sociedade patriarcal e machista, e ainda mais racista, onde as mulheres e ainda mais mulheres pretas, não tem escolha, e vamos ao longo da jornada somando tarefas.
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Ser cuidadora não é valorizado, não é muitas vezes nem remunerado se assumimos essa tarefa dentro da família, e se ainda somos provedora, ou mães solos, a carga fica ainda mais pesada, pois muitas vezes sem o apoio necessário para ter um tempinho para si e sustentar esse tempo como muito necessário para nós, só paramos em algumas situações urgentes.
Temos triplas jornadas, é tão extenuante que simplesmente priorizamos o outro.
Quando temos tantas tarefas para cumprir, pessoas para cuidar, exige um tempo tão grande que não sobra quase nada para si e seguimos muitas vezes uma vida inteira só cuidando do outro e esquecendo de si. Para entender o que é autocuidado, o grande desafio é romper com essa lógica.
Voltando à questão: o que é autocuidado? É um conjunto de práticas que o resultado seria um equilíbrio, não só momentâneo, mas uma forma de se conhecer, olhar no espelho interior e sorrir de prazer consigo mesmo, reservar momentos de análise, práticas que lhe garanta saúde, paz, energia suficiente para se manter de pé, realizar nossas tarefas e consequentemente sentir prazer consigo mesmo pelo bem estar gerado e poder relaxar, sair desse ciclo esgotante e de grande adrenalina e tensão para dar conta da rotina diária.
Aí você pode me dizer que realiza alguns cuidados semanais, como disse anteriormente ligado a estética, ou para manter a forma, e isso é muito bom, isso também é um cuidado com a saúde física e emocional, mas será que isso é o suficiente?
E aí pergunto: como você entende o que é um cuidado mais profundo sobre si mesmo? Ou acha tudo isso uma grande bobagem, porque entende que é capaz de dar conta da sua própria vida?
As práticas de cuidados com saúde mental através das psicoterapias e com o corpo, com as terapias holísticas que são medicinas tradicionais, vem nos ensinar e complementar esses cuidados básicos. Mostrar que o cuidado com corpo não é o suficiente, temos muito a aprender sobre nós, temos outros corpos, temos uma mente emocional, psíquica, energética, somos muito complexos, e aí mora o grande desafio desse cuidado, pois é tão amplo que colocar isso na vida prática, parece impossível, e eu digo não é, acredite!
Se ainda precisamos de mais, se sentimos que nosso emocional não anda bem, ando com raiva, me sinto sozinha, não saio do mesmo lugar, só corro, corro e nada anda, sou sempre perturbada em meus sonhos, durmo mal, tenho angústias e ansiedade, não consigo me sentir bem na presença de outras pessoas e quem dirá me abrir para que elas me ouçam.
Um dia desses ouvi uma pessoa no terreiro dizendo “nossa, antes de conhecer a terapia não sabia que seria tão importante, pois hoje não consigo mais viver sem”.
Outras participantes do Núcleo Obará sempre dizem “antes de conhecer as práticas integrativas não me conhecia, nem sabia o que era praticar uma meditação, falar de si mesmo era um grande desafio, pois não gostava de ser julgada, agora não sei mais viver sem este grupo.”
São diversas as formas de autocuidado que hoje podemos acessar, porém, temos que entender que o maior desafio é enfrentar nossos próprios medos e preconceitos. Entender que temos ferramentas internas para mudar a nossa conduta, comportamentos e avaliar melhor as escolhas e a forma que escolhemos para seguir em frente.
Ao ser convidada a fazer parte dessa coluna, ouvi a seguinte frase, “você deve ter muito para falar”, ao afirmar que “nós não temos tempo para sermos nós mesmos, pois o sistema capitalista não nos permite nos conhecer”, e é sobre isso que estou falando aqui nessa coluna hoje.
Quando vamos ter tempo para nós, para respirar, para pensar, ser criativos, desenvolver nossos próprios projetos, escrever nossa própria história se estamos vivendo no automático, sem tempo e espaço para uma real auto descoberta, se conhecer realmente, ouvir sua própria história, saber como vai seu interior e saber de onde vem tanta pressa, tanta angústia, tanta dor e solidão.
Temos que dar um primeiro passo. Um passo após o outro, sem perceber, já integramos vários cuidados e práticas que são naturais e não conseguimos mais viver sem, é maravilhoso.
Somos perseguidos por um processo externo que me parece tão adoecedor que nos separam em pedaços e depois nos dão pílulas mágicas para não sentirmos a dor, e assim seguimos, tomando muitas vezes doses altas de medicamentos para conseguir viver, porém, muitos de nós já estamos tão adoecidos, dependentes de algo para nos anestesiar, que deixamos quem somos para trás e seguimos sendo sombras do que um dia fomos, pois acreditamos tanto que temos que seguir em frente, sermos capazes de enfrentar tudo sozinhos, sermos tão fortes, que caímos nesse penhasco sem nos dar chance de sair desse buraco.
Mas podemos e temos sim como reverter essas questões, darmos chances de sermos cuidados, de nos cuidar e a partir de práticas diárias, muitas delas pequenas, acessíveis e naturais, para que possamos sair do automático.
Darmos chances de curar nossas feridas através do amor, do afeto e desenvolver nosso potencial, nos reservar uns minutinhos de descanso e criatividade, sermos mais felizes, pois temos direitos, temos desejos, mas quais são eles tão possíveis de serem vividos?
Deixo aqui uma questão para falarmos numa próxima sessão.
Cátia Cipriano é psicóloga e terapeuta em práticas integrativas, mulher negra, de candomblé, filha do Orixá Osóòsi, escritora e idealizadora do Núcleo Obará, que nasceu em 2019. Lançou em 2023, o Livro “Obará – Escrevivências Coletivas de Autocuidado”, que é um espaço para cuidados voltados à promoção da saúde mental, práticas integrativas, culturais e religiosas. Graduada em Psicologia pela Universidade São Francisco (2011) e especialização em Direitos Humanos pela UFABC.