“Dois de novembro, era Finados
Eu parei em frente ao São Luiz, do outro lado
E durante uma meia hora olhei um por um
E o que todas as senhoras tinham em comum?
A roupa humilde, a pele escura
O rosto abatido pela vida dura
Colocando flores sobre a sepultura
(“podia ser a minha mãe”)
Que loucura
Cada lugar uma lei, eu tô ligado
No extremo sul da Zona Sul tá tudo errado
Aqui vale muito pouco a sua vida
A nossa lei é falha, violenta e suicida”
Sobrevivendo no inferno – Racionais MCs
Há quase três décadas, no dia 2 de novembro, as ruas da zona sul de São Paulo são tomadas por milhares de pessoas em marcha contra a violência tratada e denunciada na música dos Racionais em defesa da paz.
A Caminhada Pela Vida e pela Paz é uma das principais mobilizações sociais da região do M’Boi Mirim, resultante da articulação e mobilização de diferentes movimentos, coletivos e instituições que se organizam no Fórum em Defesa da Vida.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.
Essa mobilização nasceu em 1996, ano em que o Jardim Ângela foi considerado pelas Nações Unidas (ONU) como o bairro mais violento do mundo, e junto com seus bairros vizinhos, Capão Redondo e Jardim São Luís, ficaram conhecidos como “triângulo da morte” pela mídia.
É importante dizer que essa violência que atingiu e atinge essas periferias é parte do Genocídio Brasileiro, denunciado por Abdias do Nascimento.
A maioria das vidas enterradas no cemitério São Luís é de homens jovens e negros, como diz a música: “E o que todas as senhoras tinham em comum? A roupa humilde, a pele escura”.
Todo ano a Caminhada elege uma luta. Nessa 28° o tema foi “Saúde Mental na quebrada é fundamental”. A Caminhada pauta esse assunto tão importante e tão desassistido por políticas públicas e mesmo pelo senso comum da sociedade.
Infelizmente, a saúde mental é privilégio de poucos, mas a 28°caminhada reivindicou como Direito.
Quantos são os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) na nossa região? Quanto tempo levamos para conseguir um atendimento psicológico ou psiquiátrico nas nossas UBS? Qual é o orçamento dedicado à Assistência Social do município de São Paulo? Como isso chega para as periferias? De que forma o Estado apoia iniciativas que tentam cobrir essa lacuna do próprio Poder Público?
Essas perguntas são fundamentais para entendermos como a nossa quebrada ainda está muito distante do acesso digno à saúde mental. E mais grave que isso são também as razões que proporcionam à população preta, pobre e periférica o adoecimento: o trabalho exaustivo, a pobreza e a desigualdade social, racial e de gênero, o transporte público precário, a violência de Estado, a lgbtfobia, a intolerância religiosa, a falta de opções de lazer e cultura, a estrutura educacional que repete os ciclos de violências e tantos outros problemas que nos estigmatizam.
Na Caminhada, encontramos muitos jovens e educadores, mas uma grande participação é das mães que perderam seus filhos para violência, mulheres que transformaram suas dores e seu luto em LUTA, em força para lutar pela paz, pelo direito à vida e pela Periferia.
Outro sujeito importante nessa mobilização social foi o Padre Jaime, que das 28 caminhadas esteve à frente em 26, por isso um momento especial da caminhada foi a homenagem prestada ao querido Jaime.
Cansado de enterrar jovens, padre Jaime dizia que não adiantava ficar apenas rezando para o problema desaparecer, era necessário engajamento popular, articulação e mobilização de diferentes sujeitos sociais e do Estado, que é responsável pela segurança pública e que em muitos casos eram promotores da própria violência.
Com sua práxis freiriana, padre Jaime sempre denunciava e anunciava, assim a Caminhada pela Paz nunca foi um espaço apenas de manifestação e denúncia, ao contrário: ela anuncia e reivindica a paz e tantas melhorias e necessidades da região.
Dessa forma, graças às caminhadas muitas conquistas foram alcançadas. No campo da saúde, por exemplo, conseguimos o Hospital M’Boi Mirim, no Jardim Ângela; na segurança pública, as bases comunitárias da Polícia Militar; na educação, mais escolas; na Assistência Social, mais serviços como os CCA’s e os CJ’s.
Como a saúde mental, outras demandas da periferia, ainda não são atendidas, nem mesmo a violência acabou. Portanto, a luta continua, as marchas continuam, e a organização popular precisa continuar. Precisamos ter coragem como sempre dizia o padre Jaime.
E ainda parafraseando esse mestre, termino com um provérbio africano que ele sempre dizia: “Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias.”