“Educação e arte não andam separadas”, diz Jô Freitas sobre acesso à cultura nas periferias

Autora do livro “Goela Seca”, a escritora conta como sua percepção de mundo se transformou através da arte e no contato com saraus na periferia da zona leste de São Paulo.
Por:
Roseane Prates
Edição:
Evelyn Vilhena

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Nordestina, nascida em Paulo Afonso, município da Bahia, Jô Freitas chegou em São Paulo aos 5 anos. Atualmente moradora do Itaim Paulista, zona leste da capital, a escritora diz que seu primeiro contato com a arte aconteceu a partir de políticas públicas. Assim começou a entender as linguagens do corpo, da musicalidade, do teatro e descobriu o sarau, espaço no qual iniciou sua jornada como poeta e escritora contando sobre as periferias e roças que morou.  

A escritora conta que sua trajetória na poesia se conecta ao encontro que teve com saraus periféricos como Pretas Peri, Cooperifa, Sarau de Sacolinha, Elo da Corrente e os Novos Barretos. Jô compartilha como foi o processo da publicação de seu primeiro livro “Goela Seca”, as adversidades de crescer em um contexto com poucos recursos educacionais e a conquista de se mostrar escritora para pessoas tão significativas em sua vida.  

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Como iniciou sua trajetória na poesia?

A minha trajetória na poesia se inicia através do Projeto Vocacional, que é um projeto de políticas públicas. Na periferia, principalmente naquela época, anos 2000, não tinha muitas ações artísticas. E aí eu sempre com aquela necessidade de me expressar e não sabia como seria essa expressão. Foi [no] teatro vocacional que comecei a fazer que fui conhecendo alguns escritores da literatura brasileira, [como] Guimarães Rosa, Carolina Maria de Jesus. Eu não via isso na escola e a partir do teatro eu conheci a cena de saraus que estavam bombando nas periferias de São Paulo. O sarau O Que Dizem os Umbigos foi que me apresentou essa multiplicidade de arte, de literatura e de poesia. Foi quando comecei a fazer minhas poesias [e] performances. Fui circulando vários saraus da cidade de São Paulo.

Como você entende a conexão do território do qual você veio com o que você vive hoje?

Acho que quando a gente é da periferia a gente pauta muito território, né? Até porque a gente quer criar uma identidade e pertencimento àquele lugar. Meu primeiro território foi a roça lá de Paulo Afonso, na Bahia, e aí na vinda dos meus pais para a periferia do Jardim Camargo, que fica na zona leste, é um cenário muito hostil para crianças que vinham de um outro cenário, da roça. Então tinha muita violência. Eu vim de um lugar que meus pais chamam de invasão, porque se tem um espaço ocioso, esse espaço é para a comunidade. É preciso ocupá-lo e eu acho que é essa a noção de pertencimento sobre a periferia, e fazendo com que os próprios moradores ressignifiquem aquele espaço. De alguma maneira se cria um espaço cultural. A gente fazia um sarau que é o Sarau Pretas Peri que era em um terreno baldio. Com dois anos de atividade a gente conseguiu uma construção da praça e com [essa] construção a comunidade começou a ocupar. Nessa ocupação de compartilhamento desse espaço as relações foram melhorando, então muitas vezes a gente acha que a arte a cultura não modifica o seu território, [mas] modifica.

Como vê a importância da relação entre arte e educação? E dentro da sua construção artística?

A educação nessa minha construção artística foi bem conflituosa, porque eu fui uma estudante que não tinha muito um conteúdo que estivesse próximo do que eu me entendia enquanto ser humano. Quando a gente fala sobre a lei 10.639 que é a obrigatoriedade do ensino afro-brasileiro preto nas escolas, quando eu fui estudante não tinha isso. A gente coloca um aditivo muito determinante para uma história de massacre. Para mim, foi se [conectando] um pouco para a arte que eu consegui ir para a educação e ressignificar. Quando a gente tem um povo que sabe da sua história, a gente também consegue entender as nossas raízes, e a educação é responsável por isso, só que a gente precisa caminhar em rede. Toda uma comunidade também pode ser suporte para uma transformação na educação. 

Arte e educação estão totalmente ligadas quando a gente fala sobre essa linguagem no qual eu pertenço que é a literatura. [Estamos] entrando nos espaços educacionais a partir dos professores. Quando a gente entende que a educação tem que ser transgressora, que a educação tem que ser liberta, precisa ser plural para vários corpos, para várias identidades, a gente começa a entender que é o nosso lugar de potência, é um lugar que a gente precisa estar. Então a educação e arte são irmãs gêmeas, elas não andam separadas, até porque [estamos] formando pessoas tanto nas artes, quanto no plano educacional. Eu ainda acredito que são os professores os nossos grandes aliados para que a gente consiga uma emancipação, uma noção de pertencimento sobre a vida.  

Como foi desenvolver toda essa sua comunicação não-verbal para interpretar as suas poesias no palco?

Acho que tenho um mérito de ser nordestina, mas por outro lado eu sempre fui uma criança muito calada, não por timidez, muito retraída, minha família sempre foi muito um lugar de “para não se expressar tanto”. Tem muito isso, você não fala sobre os seus sentimentos, não fala sobre seus desejos. Então foi essa criança que tinha uma energia que foi controlada e aí as artes para mim foi esse lugar que fui encaixando, essas peças quebradas que foram tirando de mim. E alinhando com o que eu era, mas sobretudo me comunicando com o meu bairro e com as pessoas que eu acredito. Além de falar [e] escrever eu leio bastante, ouço bastante histórias [de] pessoas, então quando eu entendo que a comunicação com essas pessoas é muito simples, no sentido de é só você estar, ouvir e tentar dizer dentro das suas palavras também a sua trajetória. É porque se conecta com o outro, porque a gente está falando sobre todo um território, que seja a periferia, quilombo, aldeia, roça, [estamos] falando sobre uma massa de pessoas que acham que a arte é muito elitizada, só está nos grandes centros e que só aquilo é bom, e não, a gente tem uma comunicação que é genuína da vivência, do respeitar também quem veio antes, e está muito conectada com a ancestralidade, porque esse é o ponto.

Como foi conseguir publicar um livro de maneira independente?  

Sendo de uma família que não pôde estudar, eu sou uma escritora, uma pessoa da palavra, isso para mim é muito valioso. É um presente poder apresentar para os meus pais e para tantas pessoas, que às vezes não tem essa percepção de potencialidade de si ou do outro, de que é possível. E aí eu escrevo dentro disso como uma forma de vingança, no lugar em que me queriam não letrada como tantas pessoas, no lugar que me queriam servindo o outro, eu sou escritora. A sabedoria não vem através da academia, não vem por escrever um livro, a sabedoria também é de vida e é pela possibilidade de olhar o mundo de formas diferentes todos os dias. Para mim, [o] livro “Guela Seca” é traçar e escrever outra história. Inclusive para as pessoas que vão chegar depois de mim, para meus familiares e para tantas outras pessoas que têm a generosidade de me ouvir. Para mim, mais do que escrever, é ser lida. E mais do que falar, é ser ouvida.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

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