Opinião

Herança torta de um cineasta de quebrada

Para você que vez ou outra me lê aqui no Desenrola, dessa vez meu texto vai ser diferente. Ele tem destinatários definidos, mas espero que possa alcançar outros corações feridos também.

Leia também:

Aos meus filhos João, Flora e Taiguara.

Meus amores, dia 08/10 agora seu pai vai celebrar o início de uma Mostra sobre seus 20 anos de correria no audiovisual.

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.

Quero começar pedindo desculpas, por fazer vocês realizarem trabalho infantil nas minhas produções, por fazê-los faltarem muitas vezes na escola, por obrigá-los a dormir tarde na falta de rotina do papai, seja por trabalho ou simplesmente boêmia.

Realmente desculpa, seu pai nunca pôde e talvez nunca poderá oferecer a vocês algo além de idéias e (in)tenções políticas, confrontos imagéticos rasos e vinganças coloniais malacabadas. 

Lutei com as armas que tinha

Filhos, perdão. Provavelmente nem aquele pichuleco que todo cineasta pós morte deixa de direitos autorais ou co-autorais eu deixarei. Comecei a vida na arte dizendo que não cometeria o mesmo erro de seu avô, meu pai, que entregou seu ouro em canções que foram da censura ao estrelato de boteco, quase sempre sem garantir um vintém pro almoço do dia seguinte, estava muito ocupado sendo feliz com suas próprias criações, vivendo na música o que eu vivi no cinema, a errância de não querer ser dono de nada além do sorriso da platéia, fosse de um grande teatro ou de uma meia dúzia de gatos pingados num botequim. 

Meus queridos, saibam que não fiz por mal, eu até critiquei as atitudes dos mais velhos que me legaram essa maldição da pobreza financeira e da riqueza cultural. Mas não consegui ser diferente. 

Sabe meus filhos, até os praguejei, disse que não fizeram o sucesso merecido porque nunca foram capazes e dedicados à devida profissionalização.Descobri tardiamente o que eles já sabiam de fato, o mercado nos leva suave com sua cenoura inalcançável enquanto aproveita o passeio no nosso lombo pobre e utópico.

Filhos, desculpa mesmo, não consegui romper o ciclo, não consegui ser outro que não essa cópia revoltada de seus avós, um pouco mais estudado, um tanto mais experiente, igualmente subaproveitado, vilipendiado, eternamente romântico como eles. 

Os que enfrentaram com poesia e esperança aquela ditadura antiga que se metamorfoseou nessa distopia fake que não conseguimos enfrentar. Digo, eu pelo menos não, da rua as redes, nada fez sentido, optei por sobreviver com os pares na quebrada onde nasci e nas outras que me forjaram no caminho das lutas. Sempre tentando não adoecer e minimamente entregar uma arte suja e ultrajante como somos, eu e meus iguais.

Posso lhes dar pouco, dicas simplórias e filosofias vãs, como as que critiquei dos meus antecessores. Até aquilo que achei que não incorreria em erro, como contratos e outras formalidades que dão segurança na fragilidade das relações eu pequei, nada que produzi se sustenta além dos créditos finais dos filmes. 

Fui e talvez seja sempre juvenil nisso de dar preço, prazo e ordenamento jurídico em minhas obras artísticas, essa arte que tantos gostam de vangloriar como coletiva, mas que explora do mesmo modo como as biroscas e metalúrgicas que seu velho passou antes de se achar cineasta. 

Meus amados, não lhes direi para não seguir esse caminho, aliás não contem comigo para induzir caminho algum. Eu simplesmente não sei como cheguei aqui e muito menos pra onde vou na altura dos meus quase quarenta anos. E isso não é só um clichê nostálgico, contudo, sou grato ao sonho!

Só posso dizer-lhes que para além das tragédias, tropeços e engodos, vivi momentos lindos, experiências incríveis que sem a câmera jamais teria vivido, coisas únicas e finitas, como últimos relatos de mestres, puxões de orelha de anciãs, derradeiros gritos de gente anônima e infindável como tudo que mora nas profundezas do mar ou da terra, prioritariamente periféricas, pretas, dissidentes de gênero, de classe, enfim. 

Operei os discursos e desejos de gente muito parecida com aquelas que cresci vendo na casa de sua bisavó, putas, matadores, bêbados, ladrões, bichas, hippies, caipiras, trabalhadores comuns, mulheres, indígenas, pretos, mestiços e toda ordem de gente que, contra tudo e contra todos, sempre tiveram muito a dizer e quase nunca foram ouvidas.

20 anos, acreditam? Nem dou conta de processar, vivi na intensidade máxima, meu corpo e minha alma pagam o preço da velocidade que apliquei nos motores.

É que gente como eu não tem segunda chance, sabe, não pode dar errado, só pega o rabo do foguete e vai se equilibrando entre a utopia e os boletos.

20 anos não são 20 dias, e eu posso até me considerar bastante jovem pra média de vida da Faria Lima, mas vocês sabem, meu prazo de validade é periférico e frágil como uma roseira no lixão. Por isso é importante celebrar.

Dedico-lhes essa mostra e toda minha obra, inclusive as feitas antes de vocês nascerem. Criei e procriei tudo pensando em um futuro ancestral, onde a violência não nos escravize e onde vocês possam exercer a potência e a coragem que lhes é patente. 

Tá tudo errado, eu não mudei muito o cenário, mas eu amo vocês e talvez um dia isso me salve, e por consequência, talvez também salve vocês!

Veja no link abaixo os locais e datas da mostra, espero vocês



Autor

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.