A iniciativa está conquistando um público que valoriza a geração de oportunidades de trabalho para pessoas LGBTQIAP+.
Após fazer uma publicação no grupo de Facebook FeminiTrampos, em junho de 2020, o multiartista indígena Cassis Guariniçara, 28, recebeu diversas curtidas na sua publicação, que comunicava aos membros da comunidade que ele estava oferecendo serviços de pintura e manutenção residencial e comercial.
Após a publicação no grupo, Cassis, que é uma pessoa trans não binária, viu a sua agenda de trabalhos aumentar de maneira inesperada. “Eu consegui fechar quatro meses de agenda só com pintura”, relembra ele.
Segundo o multiartista indígena, esse foi o pontapé inicial para o surgimento da Rede Esposas de Aluguel, um grupo de pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ que prestam serviços de manutenção residencial e comercial para moradores de todas as regiões de São Paulo.
“Eu iniciei trabalhando só com pintura porque eu ainda tinha muita insegurança, né? Eu não botava fé em mim, eu não acreditava na minha capacidade”, relata Cassis, apontando que a baixa autoestima tinha uma relação direta com a sua saúde mental
Crescimento da rede
Desde que começou a trabalhar com os serviços ofertados pela rede, a estrutura do trabalho mudou bastante. Nesse período 15 pessoas já fizeram parte da rede desde o seu surgimento.
No começo do negócio, a noção de preços vinha do pai e do cunhado de Cassis, que além de auxiliar com dicas de precificação, já foram remunerados prestando serviços de manutenção.
“Eu sempre fazia um orçamento a mão, uma planta do que precisava ser feito nesses trabalhos e mandava uma mensagem pra ele [Claudemiro] falava: ‘papai, quanto que eu cobro? Aí mandava mensagem pro meu cunhado também e eles me davam uma média de preço de algumas coisas”, relembra.
“Eu sempre quis ser justo com as pessoas que trabalhavam comigo, porque todo mundo exerce a mesma coisa, não faz sentido eu ganhar mais ou ganhar menos”
Cassis Guariniçara, criador da Rede Espoas de Aluguel
Outras demandas relacionadas a gestão do negócio e execução de serviços, de acordo com Cassis, foram fruto de aprendizados “apanhando”, como a forma de cobrança a ser feita por um trabalho executado por grande parte da equipe ao mesmo tempo.
“Eu sempre quis ser justo com as pessoas que trabalhavam comigo, porque todo mundo exerce a mesma coisa, não faz sentido eu ganhar mais ou ganhar menos. Eu queria pagar R$150 a diária e eu acabava às vezes não ganhando nada, ou ganhando R$80. Então, eu fui aprendendo de acordo com essas coisas que eu passei, né?”, diz sobre a experiência com as primeiras reformas.
Hoje, para fechar um trabalho, Cassis já aprendeu técnicas de orçamento e costuma consultar tabelas e realizar orçamentos em outras empresas que prestam este serviço para ter um referencial comparativo.
Corpo racializado
Segundo o criador da rede esposas de aluguel, o corpo racializado retrata o sujeito que já sofreu alguma forma de racismo, exotização, sexualização ou estereótipo. Desde um corpo indígena, periférico, feminino, até um corpo que pode ter privilégios, mas sofre esse tipo de abordagem de alguma maneira.
Para ele, acolher esses corpos na rede de esposas transforma o trabalho executado em equipe: “Essas pessoas tendem a sofrer e ocupar um lugar de muita dor dentro da sociedade, então são essas pessoas que a gente abraça, a gente se identifica, se cuida e se conforta de alguma forma”, diz.
Gabriel de Sousa, 23 anos, é uma das pessoas que foi empregada pela rede. Ele e Cassis se conheceram morando na ocupação e hoje são vizinhos no Grajaú. Gabriel é artista de rua e além dos serviços de reforma, trabalha no farol com malabares há quase 3 anos.
“É uma rede que me ajudou muito, pois eu sendo um corpo racializado pelo sistema tem pouquíssimas oportunidades de emprego. É uma forma de inclusão, não é qualquer equipe que tenha pessoas subversivas”
Gabriel de Sousa, colaborador da Rede Esposas de Aluguel
O artista entrou para a rede por convite de Cassis, pois já trabalhou outras vezes com serviços de obra. Juntos, eles realizam todo tipo de reparo, desde pintura até elétrica, hidráulica, instalações e outras coisas na área da construção civil.
Atualmente, Gabriel realiza bicos de segurança em um posto de gasolina para complementar a renda e sustentar o filho de 5 meses, que gera muitos gastos com alimentação e produtos de higiene.
Com o bico de segurança, que não tem ligação com o trabalho executado na rede, Gabriel precisou cortar o cabelo para se encaixar no que os chefes pediam: “é um negócio muito ruim trabalhar pro sistema, eles não aceitam como a gente é, tem que estar nos padrões deles”, lamenta.
Já na rede de esposas de aluguel, o artista encontra um espaço para ser ele mesmo, principalmente porque o serviço é oferecido por pessoas que, na maioria das vezes, entendem a dinâmica de trabalho que eles podem oferecer. “O Cassis já deixa bem claro antes de começarmos o serviço que quem vai trabalhar são indígenas, pretos e trans”, conta.
Outra pessoa empregada atualmente pela rede é Felipe Chianca, 28 anos, que conheceu Cassis também na ocupação. Ele havia acabado de chegar de João Pessoa, na Paraíba, com 18 anos, os dois se tornaram amigos e hoje trabalham juntos. “Ele pedia sempre a minha ajuda e eu já sabia bastante coisa sobre eletricidade, meu pai era eletricista e aí foi indo”, diz.
Assim como as outras pessoas, Felipe também tem outras fontes de renda. Ele é artista plástico, e possui trabalhos de pintura, xilogravura, performances e também trabalha em festas.
Ele entende a rede como um espaço de abertura para o mercado de trabalho para pessoas como ele, que sofrem homofobia e não têm tantas oportunidades.
“É um lugar de abertura para minorias e corpos incidentes e pessoas que não tem essa oportunidade de entrar em contato com o trabalho, ele [Cassis] abre muitas portas pra gente”, expressa.
Rede de Formação
Segundo Cassis, um dos principais intuitos do esposas de aluguel é ser uma rede de formação. “Hoje, eu consigo formar profissionais que são pessoas racializadas, travestis, pais, indígenas, negras e essas pessoas acabam oferecendo seus próprios serviços e não ficam dependentes de mim”, explica Cassis.
Mesmo com a rede de apoio que Cassis construiu dentro desse espaço de trabalho, ainda assim algumas vezes eles se deparam com episódios de machismo, homofobia, transfobia e outros preconceitos: “Todos os dias alguém entra nas minhas redes e pergunta se eu sou prostituta, mas eu tenho certeza que se fosse um homem que colocasse lá no perfil “marido de aluguel” eles não receberiam esse tipo de pergunta e comentário”, lamenta.
Esse é um ponto enxergado também por Felipe, ele comenta que a relação com os clientes varia bastante apesar da maioria já contratar a rede sabendo o perfil das pessoas que executam o trabalho e escolhem o serviço exatamente por esse motivo.
“A gente é chamado e às vezes conhece pessoas legais e às vezes conhece pessoas ruins. Tem deles que serve pra gente café e tem deles que não serve nem água. A gente tem priorizado mulheres, que geralmente tem medo de homens pra fazer esse tipo de trabalho, pessoas LGBTQIA +, nosso público alvo é realmente esse”, afirma.
Cliente
Uma das pessoas que já contratou os serviço da rede espoas de aluguel é Revoar Sabino, 27. Ela ficou sabendo da existência da rede através de Felipe, quando visitou a ocupação e teve uma conexão simultânea com Cassis.
“Eu também sou uma pessoa indígena como o Cassis e conversamos sobre o que a gente faz, porque o Cassis também é artista, né? Mas também trabalha nessa rede de esposas de aluguel e foi através desse encontro que eu acabei conhecendo e comecei a contratar o serviço dele”, relata.
Como está de mudança, Revoar contratou os serviços para realizar pequenos reparos na casa nova. Eles instalaram o chuveiro, colocaram prateleiras e quadros nas paredes e também estão auxiliando na fiação elétrica da casa que está com algumas limitações.
“É muito mais confortável e seguro pra mim trabalhar com pessoas que não são homens, cisgêneros e brancos na maioria das vezes”
Revoar Sabino, morador da região central de São Paulo.
Nos próximos meses, Revoar pretende continuar contratando as esposas de aluguel para outros serviços na residência, pelo fato de estar escolhendo profissionais para cuidar de seu lar que tem os mesmos princípios que ela.
“Eu sou uma pessoa trans não binária e indígena, então você já imagina o quanto a sociedade não humaniza a gente, né? Eu me sinto muito mais confortável trabalhando com pessoas que estão mais próximas do meu corpo”, relata Revoar.
Além disso, para Revoar, contratar o serviço oferecido pela rede também é uma maneira de apoiar um trabalho que é majoritariamente dominado por homens héteros: “existem pessoas como nós habitando também esse lugar”, reforça.