Rito das Ditas

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Impressões, lembranças e emoções que me atravessaram ao assistir o espetáculo “Canto das Ditas – Fragmentos Afrografados de Cidade Tiradentes” do Núcleo Teatral Filhas da Dita.

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Peça Canto das Ditas – Fragmentos Afrografados de Cidade Tiradentes do Núcleo Teatral Filhas da Dita – Foto: Areta Padma

Oprê! Tudo bem contigo nesses dias de caos? Eu vou envergando sem quebrar aqui pela minha quebrada, que teima em também não se envergar e, cada vez mais, vai firmando e se enxergando nas suas. Você já vai entender o porquê…

O papo que vamos desenrolar por aqui esse mês é sobre teatro. Uma das coisas que vem me recolocando nos trilhos depois de tantos dias, semanas, meses, anos de isolamento na pandemia é o teatro, em especial montagens teatrais de luta.

Bem, já aviso que não sou crítico de teatro, mas tenho um amor especial por criações autorais e pela escrita dramatúrgica de teatro, música e cinema, então vez ou outra vou me arriscar a expor impressões sobre obras autorais. O texto desse mês está meio longo então pegue seu chá e tenha paciência porque não consegui resumir muito, mals… 

A peça que me fez escrever este texto aqui foi “Canto das Ditas – Fragmentos Afrografados de Cidade Tiradentes” do Núcleo Teatral Filhas da Dita. É uma peça muito forte, sensível e que ecoa muito da consciência coletiva das quebradas ao longo dos anos: consciências das vielas, quebradas, subúrbios e bolsões de pobreza da cidade de São Paulo, consciências deste e de outros tempos, deste e de outros planos, no caso dessa peça, consciências daqui do Aiyê e de lá do Orun.

Cidade Tiradentes, bairro de maioria negra na Paulicéia, é uma das principais personagens da peça, é uma gigante de língua banta-tupi-yorubana, uma cidade angoleira que merece demais essa montagem teatral. Não vou falar muito das cenas da peça (mas tem uns spoilers sim), falarei das minhas impressões e indico que não fiquem apenas aqui confiando em mim não viu… Vão assistir a peça! É feminina e sagrada!

Nosso tempo, nomes e memória 

É preciso lembrar que Éssepê é uma cidade que historicamente se quis branca e exclusiva para umas poucas pessoas mimadas, herdeiras de escravocratas que quiseram acumular poder a alguns elitistas pálidos, que ao longo de anos expulsaram nossas avós, avôs, pais e mães para as quebradas.

Nos quiseram longe e esperavam até que não sobrevivêssemos! Bem, aqui estamos nós não é mesmo?  

A peça “Canto das Ditas” se realiza num contexto histórico na qual ela se torna ainda mais urgente e potente. Vivemos num tempo em que alguns “homens” reivindicam-se o “direito” de violar direitos, em nome de uma “família” abstrata na qual seriam “chefes”, em nome de um “Cristo”, de uma cristandade não-bíblica e uma “prosperidade” agressiva, excludente, que opera sob a síndrome de vira-latas e que por isso vê na cultura estadunidense, no “american way of life”, um sonho idiotizado em terras “brazucas”.

Como se fosse possível servir ao Tio Sam, vivendo o “sonho americano”, mesmo morando na América Latina, em São Paulo, Paraná, Minas Gerais. Frantz Fanon explicaria? Percebe que as aspas desse parágrafo destacam falsidades? Que fique claro, e para o que quero ilustrar claro mesmo.

Esse transe político, que por aqui é um traço cultural que aflora mais ou menos forte de tempos em tempos, aponta para um “país” de cultura colonial (o “Brasil”), machista, escravocrata e cínico sobre os reais problemas de seu povo e suas maiorias (negros e mulheres, negras mulheres).

Esse vírus, seita, agrupamento fascistóide ou o que o valha pode pegar vários de nós, especialmente nós homens pobres e mal escolarizados, que se vacilarmos podemos servir de bucha de canhão para uma classe de homens brankkkos mal-intencionados que através da alienação manipulam os corpos dos demais como marionetes, muitas vezes marionetes violentas e ensurdecidas. 

Peça Canto das Ditas – Fragmentos Afrografados de Cidade Tiradentes do Núcleo Teatral Filhas da Dita – Foto: Sheila Signário

Neste tempo em que vivemos, por conta de muitos falsos moderados e de alguns extremistas de direita, aumentam e se agravam os casos de feminicídio, homofobia, assédios morais/sexuais, transfobia e racismo.

É nesse tempo que as Filhas da Dita sacralizam sua montagem teatral, que não por acaso aqui repito pra não deixar dúvida, redundante que sou e serei neste texto: Essa é uma peça sagrada! Em sua dramaturgia, já avisa potente e consciente que é da sua própria força e urgência: “Presta atenção menino! Presta atenção menino!”

É importante lembrar que temos nomes e memória. A peça “Canto das Ditas” reverbera em canções, falas e burburinhos os nomes e memórias de afeto e da força fértil e nutridora das mulheres pretas.

Na peça fala-se especificamente de mulheres das várias vilas da Cidade Tiradentes, mas suas histórias e estórias refletem também a formação de vários lugares, demonstrando várias lutas por direitos que as mulheres encabeçam nas formações dos bairros das periferias do “Brasil”: lutas por escola, postos de saúde, creches, por dignidade, direitos reprodutivos plenos, luta contra a violência doméstica, luta por asfalto digno, luta por saneamento básico, por direito de existir a elas e a seus filhos, que seguem do século 20 até hoje sendo perseguidos e sem direito a subjetividade neste cínico “país do futuro”. 

Ritos, parentes e ancestrais  

A cenografia minimalista e afrikanizada com a qual Cidade Tiradentes é apresentada ao público é muito generosa por nos permitir imaginar, preencher o espaço com a memória e com a ancestralidade, não pela falta de algo, não pelo vazio, mas pelo fato da peça se apresentar de fato aberta, convidativa a imaginação coletiva e a interpretações diversas sobretudo de pessoas de quebrada.

O palco, o cenário, faz um círculo na terra e se coloca pra todes como uma gira aberta, uma festa das Yabás teatralizada e ritualística, na qual as próprias e suas tantas parentes podem desfilar suas memórias e histórias. Histórias de afeto nutridor para a criação de tudo: tudo que se vê, tudo que se viu, se anteviu e verá. Um tempo não linear, descontínuo, de perspectiva afrikanizada, matriarcal e matrilinear.

 “Canto das Ditas” é um teatro onde se ritualiza a história, a memória e a luta popular. É um manifesto dramatúrgico ligado fortemente às tradições afro-brasileiras, afrikanas e à oralidade de mulheres das periferias.

É possível detectar estes elementos em vários momentos da peça. Nela podemos ver e ouvir fortes influências da migração de povos afrikanos de todos os cantos e de povos migrantes do Norte, Sudeste e Nordeste do “Brasil”.

Ouvimos suas vozes e podemos supor, imaginar, fabular como esses povos trouxeram os seus cantos, toadas e cantigas que ajudaram a moldar o barro das fundações da Cidade Tiradentes.

Reverberam os sons e cantos dos autos negros, dos sambas de umbigada, do jongo, do bumba-boi, do congado, do congo do Espírito Santo, dos candomblés e até mesmo do blues, manifestações culturais que carregam em si não só musicalidade e dança, mas ação, sentido, dramaturgias ancestrais que em si trazem grandes significados e que aqui na peça ganham ainda mais contornos e forças dada a narrativa.

Sendo pessoa de periferia é impossível não se deixar tocar e comover com histórias que nos lembram nossas tantas mudanças de casa sob o cuidado de nossas mais velhas. Mulheres que lutaram e lutam por tanto do que vemos de estrutura em nossos bairros.  

Peça Canto das Ditas – Fragmentos Afrografados de Cidade Tiradentes do Núcleo Teatral Filhas da Dita – Foto: Areta Padma

Há uma cena particular que me fez marejar os olhos e dar um risinho de canto de boca. Em certo momento as personagens sobem num caminhão de mudança e partem para sua nova morada. É um momento comovente porque é muito significativo o sonho da casa própria em nosso imaginário. Esse é um dos grandes sonhos da classe preta trabalhadora. Como não sonhar com um lugar pra chamar de seu? Como não se comover com sonhos que muitas vezes são adiados e realizados apenas pela geração posterior? Não dá pra ficar inerte aqui.

O que se move no palco são corpas femininas, num rito de fundação da Cidade Tiradentes, esse bairro/país de 38 anos de idade localizado no extremo leste da cidade de São Paulo.

Representar mulheres no maior conjunto habitacional da América Latina não é pouco, mas mesmo essa grande dimensão fundadora, instauradora, esse nascedouro é ampliado e sacralizado com a dualidade escolhida para a representação das atrizes/personagens, que operam sobre duas personalidades ou duas facetas, uma das ancestrais terrenas, talvez as fundadoras do bairro, e a outra a face das ancestrais do Orun, as Yabás Yemonja, Obá, Oyá, Nanã e algumas encantadas.

Aliás, em se tratando de uma peça sobre o surgimento de um bairro e sobre lideranças femininas, muito adequado ser Nanã a instauradora do primeiro ato do espetáculo e nada mais potente que ter uma forte representação de Obá, orixá pouco representada em obras celebrativas aos Orixás e uma das Yabás mais centrais e mais determinadas na cosmo-sensibilidade afrikana do culto a estes. Escolhas de macumbeiras das boas!

 Permanência, consciência e reparação 

É muito bom poder assistir uma peça que abre debates importantes sobre permanência, consciência, luta e reparação. Uma peça teatral que deixa evidente que sua dramaturgia, apesar de ter uma autora única, tem em seus entremeios, em seus processos, vários depoimentos, relatos, escutas e frases que vem diretamente das mulheres do CDCM Casa Anastácia, espaço de referência para mulheres no extremo Leste da cidade de São Paulo.

O texto também considera e parece assumir as vivências do elenco da Cia (que é todo da própria Cidade Tiradentes), costurando uma malha sensível, afetuosa, forte, contundente e que acalanta, por não nos deixar sós, ao mesmo tempo que não nos deixa inertes, nos provocando ao longo de toda a duração do espetáculo e nos movendo para posicionamentos sobre. A coletiva inteira merece prêmios por essa peça e eu imagino que eles devem vir.

Ainda sobre as escritas, a influência da Afrografia, conceito da congadeira e mestra Leda Maria Martins, não poderia ser melhor integrada a temática geral, a escrita e a encenação de “Canto das Ditas”, que parece seguir a tradição negra da oralitura (oralidade + literatura + vivência, conceito também de Leda).

Partindo de tantas referências e com uma execução tão afetuosa, não há como a peça não sensibilizar e mover pessoas negras que a assistam, acredito inclusive que esse seja o público afetivo mais potente para esta montagem. 

É raro se ver uma escrita tão auto-consciente e que, sendo assim, em determinado momento da peça dá piscadelas de olhos para suas pares da plateia, dizendo com cumplicidade que sabe que nasceu ali e acolá, no público, mais uma membra da sociedade de Eleko.

Já ficou claro até aqui, né? Recomendo demais assistirem “Canto das Ditas”. É importante ver a força, a dança, os toques e o gestual preciso de Luara Iracema, a mulher búfalo, que protege seus filhos através da força e singeleza dos raios.

É comovente ver o afeto, as pausas motivadas e a malandragem de Thábata Wbalojá, que em seus 5 partos nos motiva a pensar, filho a filho, sobre a mestiçagem nada cordial “brasileira”.

É necessário ver, presenciar, sentir a voz rasgada, a forte presença e o deboche cênico de Lua Lucas, que levanta na nossa imaginação vários espelhos pra se ver e para nos vermos e para nos enfrentarmos, pra sabermos que apesar de tantas mortes veremos os nascimentos de mulheres plurais, mulheres reais.

É urgente prestigiar a atuação forte, as ironias, o humor e a sagacidade de Ellen Rio Branco, que nos faz rir e sonhar os sonhos de tantas mulheres. Sonhos que podem ser lidos como sonhos inocentes, básicos, necessários para meninas-mulheres. Ellen consegue ainda ser nossa vó, nossa mais velha, aquela que sabe, que sabe e não a toa corporifica a presença de Nega Zilda, personagem tão importante para a Cidade Tiradentes.

Peça Canto das Ditas – Fragmentos Afrografados de Cidade Tiradentes do Núcleo Teatral Filhas da Dita – Foto: Sheila Signário

É possível e preciso ver possibilidades, senso de coletividade, a graça, o moleque elegante Cláudio Pavão que se põe a disposição para compor uma obra tão potente pro seu bairro. É de ouro a dramaturgia de Antonia Mattos! Eu recomendo você seguir de perto outras obras da autora, e essa aqui é mais uma obra-prima dessa macumbeira boa.

E na música? O senso musical e a sensibilidade de Jonathan Silva são transpostas numa trilha sonora que não se limita a trilha, é uma trilha que é também estória, é dramaturgia, é ação.

Parabéns Fernando Alves! A concepção de luz e a execução dela, atuam em uma simbiose muito interessante em conjunto a uma sonoplastia precisa, pontual e bem pontuada. Palmas de pé para a direção de arte de Eliseu Weide! É minimalista e bem pensada, rica pelo que se vê e pelas frestas que deixa a imaginação de todes.

Eu como homem negro, afro-indígena, como pessoa pobre e preta, sinto calor no coração de poder assistir uma peça como “Canto das Ditas”. Foi muito importante pra mim devorar, refletir, sentir, anotar, ler a dramaturgia, deglutir tudo até chegar aqui.

Talvez apenas o que eu sinta falta é de ver homens pretos engajados neste tipo de produção, dentro das produções ou mesmo prestigiando, fazendo coro. Talvez caiba aqui mais um “presta atenção menino!” a todos nossos manos.

Gostei muito da peça, fazia tempo que não era mexido assim. Me emocionei, ri, chorei. Se você gosta de teatro e acredita em artes que coloquem o desafio e a responsabilidade de mover mudanças na sociedade siga essa trupe e “vão cantar com a Benedita!”.

Se você leu esse texto e ficou com curiosidade me deixa um comentário falando o que achou do texto. Se assistiu a peça diga nos comentários o que achou. Eu peço que acompanhe, leia e assista as Filhas da Dita. Saibam delas por elas mesmas. Deixo aqui dois vídeos para você que quer saber mais sobre a peça “Canto das Ditas”:

Neste vídeo de 2019, a atriz Ellen Rio Branco e a diretora e dramaturga Antonia de Mattos falam sobre a peça ao programa “Esquina da Cultura” do canal BCC International Television. Neste outro vídeo de 2022 elas nos camarins falam como e porque cantam o que cantam.

E aí, curtiu o texto desse mês? Escreve aqui um comentário pra eu saber o que achou pra eu seguir desenrolando por aqui na coluna “Instantes”. Não deixe de ler as outras colunistas aqui do Desenrola e Não Me Enrola. 

Mês que vem tem mais.

Saravá as mudanças!

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