Eu ia pular o mês de outubro, porque a vida se impôs e eu não tinha dado conta de acompanhar. Às vezes é tanto de tudo, que a gente sente que não tem mais o que dizer. Até que aconteceu a ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro: mais de 120 pessoas mortas, caos e terror instalado. E aqui estamos.
Outro dia, uma pessoa muito querida disse que tinha uma certa dificuldade de articular o debate sobre aborto em contextos onde se discutia o genocídio da juventude negra.
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Como falar do direito de decidir, do projeto de não parir, com mulheres que tiveram suas maternidades interrompidas bruscamente? Que tiveram suas crianças e adolescentes arrancadas pela violência? Fiquei o mês todo pensando que era uma boa pergunta mesmo.
Para mim, a resposta era simples: Justiça Reprodutiva é sobre viver uma vida digna. Sobre ter as crianças que se deseja, quando se deseja, e poder criá-las em segurança, sem medo que uma bala perdida as encontre. É sobre (re)produzir a vida em condições dignas de acesso à saúde, moradia, educação. Estou falando de necessidades básicas essenciais para que possam, mães e crianças, construir e viver seus projetos de vida. Era tão simples que parecia que não dava um texto. Até começar o tiroteio.
Existir como feminista é, infelizmente, estar o tempo todo envolvida com dados e narrativas de violências. As violências rodeiam as mulheres e as pessoas de quem elas cuidam, porque são as mulheres que cuidam de todo mundo: das crianças, das pessoas idosas, das doentes, com deficiência, das presas e inclusive das pessoas adultas e saudáveis. Porque as mulheres cuidam da (re)produção da vida. Não há Justiça Reprodutiva possível no meio do fogo cruzado.
Há alguns anos, a gente tem se dado conta de como direita e extrema direita têm abraçado o problema da segurança pública, criando um inimigo interno, e têm ganhando muito poder em nome de uma política de morte. Nessa época, lembro ter escrito um texto, falando que era muito importante não permitir que a pauta fosse banalizada por figuras políticas irresponsáveis, que se apoiam nos índices e na sensação de violência generalizada que a gente vive pra se promover com um discurso armamentista e autoritário.
Nós não precisávamos aumentar o número de pessoas armadas, ou ter saudade do regime militar, que era ainda mais brutal, num país em que 60 mil pessoas morrem de morte violenta todos os anos, no qual mais ou menos 50% das pessoas mortas por arma de fogo são jovens-homens-negros. Pelo menos 10% dessas mortes são causadas por policiais em serviço, sem contar as milícias, nem os casos em que os policiais não foram diretamente indicados como causadores das mortes.
Somos o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, que registra uma agressão contra uma mulher a cada 4 minutos, e temos altos índices de mortalidade infantil, suicídio e assassinatos de indígenas. Temos números de países em guerra, e uma enorme subnotificação. Nada disso começou ontem.
O que eu queria dizer lá é que a gente já estava falando sobre política de morte fazia tempo e que a direita tinha tomado pra si o “combate” à violência, num vácuo deixado pela esquerda na segurança pública. Naquele momento, a extrema direita tinha acabado de assumir o Governo Federal e o Governador do Rio tinha vencido jurando mirar na cabecinha. Nem imaginávamos o que ainda teríamos pela frente.
Apesar de existirem infinitos modos de existir dos feminismos, em geral, nós gostaríamos que as crianças viessem ao mundo desejadas, em lares que possam amar e cuidar delas, sem bombas caindo do céu, sem risco de levar um tiro vestindo o uniforme da escola, porque um policial confuso achou que um pacote de pipoca ou guarda-chuva parece com revólver. Policial é uma categoria que se confunde com frequência, vocês sabem.
E de novo, lá do meu texto de 2019, eu me perguntava o porquê de estar trazendo essa conversa toda tão pesada? Eu tenho um interesse político em dizer o óbvio: a nossa situação é alarmante há um bocado de tempo e sinceramente acho que a gente não pode deixar que o debate sobre a violência e segurança pública continue um monopólio da direita.
Desse pessoal que acredita que segurança pública é sinônimo de extermínio. Não existe guerra contra o crime ou contra as drogas, não se faz guerra contra coisas. Se há uma guerra, ela é feita contra pessoas e sabemos quem são elas.
Pra terminar, ano que vem tem eleição, e eu te pergunto: Que tão efetivas essas ações aterrorizantes são, de verdade, no combate ao crime organizado? Vai me dizer que entrar atirando na favela, prender 80 pessoas e matar mais de 100, parar a cidade, expondo milhares de cariocas ao tiroteio, é uma ação realmente eficaz para desestruturar o crime organizado? Ou é só porque a espetacularização do extermínio dá mais votos do que uma ação articulada de inteligência mesmo?
Encher o chão da cidade maravilhosa de cápsulas de bala, fechar escolas e hospitais, parar o transporte, é mais eficaz do que uma investigação minuciosa, como a que chegou no esquema bilionário do PCC na Faria Lima? O que significa a apreensão de uma centena de fuzis, diante dos milhões ou bilhões de reais que o crime movimenta? A mesma quantidade de fuzis foi apreendida no condomínio Vivendas da Barra, no Rio também, sem que nenhum tiro fosse disparado.
Quais os custos humanos, para as pessoas que vivem na cidade maravilhosa, de uma operação como essa? As facções acordaram mais fracas e o Rio de Janeiro mais seguro, no dia seguinte a esse massacre?
Se você se interessa por segurança pública, o Instituto Fogo Cruzado faz ativismo de dados de altíssima qualidade ao monitorar e analisar dados de violência armada em mais de 50 municípios do Brasil. Te convido a ver a Cecília Oliveira explicar.
E aqui no Desenrola, em 2023 a Evelyn Vilhena conversou com a Marcia Gazza, coordenadora do movimento Mães da Leste, e com a Edijane Alves, da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, no podcast Cena Rápida: Medo e esperança: O direito à vida da população preta e periférica #15
