Projeto une tecnologia, vivências nas periferias e cultura gamer para apoiar ações solidárias de combate à pandemia de covid-19 nos territórios periféricos de São Paulo. Além de sistema de entregas, a iniciativa criou um jogo que valoriza a figura do motoboy como um ícone na luta pela sobrevivência e principalmente pela vontade de transformação social.
Com o alastramento de casos de coronavírus nas periferias e favelas de São Paulo, muitos impactos sociais negativos foram gerados, entre eles o desemprego, dificuldade de isolamento social e o fim do comércio informal e ambulante, causando um forte impacto na geração de renda das famílias.
Como resposta a esse cenário, várias campanhas de ações solidárias organizadas por coletivos, grupos culturais e movimentos sociais de todos os cantos da cidade deram início à arrecadação de recursos para compra e distribuição de cestas básicas, marmitas, máscaras e kits de higiene para os moradores mais afetados pela pandemia, mediante a um cadastro social de cada família.
Ao perceber que essas ações solidárias estão impedindo um colapso social gigantesco nas periferias, a moradora do Capão Redondo, Andreza Delgado, 24, integrante do coletivo Perifacon, criou o projeto ‘Sobrevivendo ao Coronavírus’, iniciativa focada em apoiar famílias de diversas regiões da cidade, conectando doadores e entregadores em um só propósito: facilitar o acesso às cestas de alimentos.
“Eu tive a ideia quando comecei a receber bastante mensagem no meu Whatsapp, por conta de contatos. Eu participava de algumas coisas com pedidos de cesta básica, então eu achei que seria legal me movimentar nesse sentido durante a quarentena”, descreve Delgado, citando os primeiros passos e motivações para criar uma ação solidária nos territórios.
O projeto atualmente tem em torno de trinta voluntários, alguns trabalhando remotamente fazendo ligações, e outros ajudando fazer compras de produtos de higiene e cestas básicas. Em abril, nos três primeiros dias de cadastro social mais de 600 famílias foram registradas. Como a procura foi além do esperado, o grupo teve que encerrar as inscrições no restante do mês, retornando somente em maio, mas novamente, nas primeiras No mês 24 horas de cadastro de moradores cerca de mil famílias foram inscritas, gerando um novo encerramento das inscrições, devido à grande demanda.
“Agora a gente tá trabalhando pra conseguir atender as outras mil inscrições de famílias, que residem em ocupações do bairro. A gente manda uma cesta básica, um kit higiene, um kit de máscara, vai quatro ou cinco máscaras, A gente também manda uma história em quadrinhos”, conta Andreza.
Mas como fazer para esses ‘kits de sobrevivência’ atravessar a cidade para atender mais de mil famílias? Inquietos com essa questão, o projeto ‘Sobrevivendo ao Coronavírus’ criou um game de delivery, integrando voluntários para doações e pessoas que queiram realizar uma’Carona Solidária’.
“O caroneiro se cadastra, ele recebe uma rota é ele tem a possibilidade de ir junto com um voluntário nosso fazer as entregas de cesta. É como se fosse um Uber, um sistema de entrega de cestas básicas”, explica Delgado.
Agora o projeto procura se reinventar de diversas formas, construindo novas formas de se promover, pois ainda quer distribuir muitas cestas por diversos cantos de São Paulo. Cada cesta custa R$ 55, então para o grupo atingir a meta de mil cestas precisa arrecadar em média R$ 55 mil. Pensando nesses valores, Andreza teve a ideia de ir além das plataformas comuns de marketing e financiamento colaborativo, desenvolvendo junto com seu amigo Rafael Braga, um jogo que traz diversos elementos periféricos, com uma narrativa que se encontra com o projeto.
“Um dia eu acordei e pensei que poderia fazer um jogo, então eu mandei mensagem pro Rafa que é um amigo, e aí a gente começou a conversar”, conta ela, apontando o processo de surgimento da ideia do jogo e complementa: “Cara, eu acho que a periferia ela precisa ser assistida, e quando vejo o fato das pessoas de periferia estarem retomando, e tocando nesse assunto, mostra que só a gente mesmo para entender nossa realidade, sabe?”.
“O que é uma pessoa da periferia? Ela é uma pessoa que faz o corre que tá sempre ali na atividade, e ela movimenta a cidade, movimenta nosso país”
No jogo, um motoboy tem que pegar a cesta para fazer entregas e ainda se preocupar em desviar dos carros para se manter vivo, fazendo uma analogia para representar a periferia nesse momento de ‘sobreviver para se manter vivo dentro do jogo’. O desenvolvedor Rafael Braga, 31, é morador Parque Novo Oratório, na periferia de Santo Andre, região do ABC.
Quando perguntamos como ele uniu suas vivências para construção da gamificação das ações solidárias ele responde: “A questão é que sou um Dev periférico, eu faço parte de uma demografia ali, o preto, periférico, que não tem tantas facilidades como outras demografias”, enfatiza Braga, fazendo uma clara menção à condição social e política de quem mora e vive nas periferias.
O jogo foi lançado no dia 25 de maio. A data é uma homenagem aos fãs da série O Guia do Mochileiro das Galáxias. “Foram dias trabalhando o dia inteiro para que ele tivesse pronto, todo trabalho já foi muito compensado, devido ao que aconteceu em um dia só do lançamento”, ressalta o desenvolvedor, lembrando que o projeto conseguiu arrecadar mais de mil reais para compra dos kits logo no primeiro dia e complementa: “Eu acho que a função desse tipo de jogo é exatamente essa, chamar atenção, muita gente joga e acha super interessante e através disso acaba conhecendo o projeto”.
O jogo traz em seu cenário muitos elementos que representam o imagético periférico, e Braga diz que é exatamente essa ideia, trazer as vivências da periferia, colocando ela em foco. “O que é uma pessoa da periferia? Ela é uma pessoa que faz o corre que tá sempre ali na atividade, e ela movimenta a cidade, movimenta nosso país. Então eu acho que além da intenção explícita de homenagear os profissionais da moto, acabou se provando uma ligação muito intensa mesmo dessa figura com a periferia”.
Umas das ferramentas utilizadas para desenvolver o jogo foi o Construct 2, um editor de jogos 2D, mas Rafael ressalta que o desenvolvimento da arte do jogo torna-se muito mais acessível , do que o próprio o jogo, pelo fato dos programas para desenvolver arte terem muito mais disponibilidade grátis na internet, diferente dos programas disponíveis para desenvolver um jogo.
“Na parte de desenvolvimento de jogos qualquer ferramenta pra mim é muito cara, por exemplo, para você publicar na Google Play é muito caro e no IOS também, então essa é uma parte que dificulta bastante pra gente que é da periferia”, finaliza Braga, destacando o quanto programas para desenvolvimento de jogos ainda são inacessíveis para periferia pelo seu preço.
Nesse tempo de isolamento Rafael está se dedicando em se mobilizar junto com projetos que visa combater o Covid-19 nas periferias. Segundo ele, essa foi à melhor maneira que encontrou para colaborar nesse momento. “O que faço na verdade é ter uma noção de gamer como guerrilha. Eu faço o que eu posso, com as ferramentas que eu tenho e da melhor forma possível”.