REPORTAGEM

Enfermeira narra a luta de mulheres pelo direito ao saneamento básico na zona sul de SP

Na terceira entrevista da série Guardiões do clima, a enfermeira e líder comunitária Neide Abadi conta como um movimento de mulheres acendeu o debate sobre racismo ambiental nas periferias de São Paulo na década de 70.
Edição:
Ronaldo Matos

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Vinda de uma família de imigrantes portugueses, a enfermeira e líder comunitária Neide de Fátima Martins Abati, 84, mais conhecida como Neide Abadi, cresceu na periferia de São Paulo, num contexto de racismo escancarado na sociedade, e aprendeu com seu pai, João Martins, um líder comunitário, a ser uma pessoa antirracista, valorizando a diversidade de raças, etnias e religiões.

Com mais de 50 anos dedicados a participar ativamente de espaços de participação social nas periferias. Abadi é co-fundadora da União Popular de Mulheres do Campo Limpo, movimento social liderado por moradoras da zona sul que desde a década de 1960 se organizam para combater desigualdades sociais, fortalecer a organização popular e o desenvolvimento local. A iniciativa se mantém atuante até hoje.

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A luta contra o racismo ambiental

Durante a década de 1970, a luta pela água, saneamento básico e educação sanitária fizeram parte da trajetória de vida da enfermeira e líder comunitária. Não existia água potável encanada e saneamento básico para tratamento de esgoto nas periferias da zona sul de São Paulo. A ausência deste direito fundamental afetava as famílias da região, devido ao processo de contaminação dos poços artesianos e lençóis freáticos, pelo fato dos moradores utilizarem fossas que não eram sépticas.

Este problema fez com que moradores desenvolvessem uma série de problemas de saúde, causados pela contaminação da água e do solo. Dona Neide relembra que nesta época, as casas eram construídas próximas a córregos, devido ao fato de não existirem terras com preços acessíveis, essas construções se tornaram o meio de moradia mais acessível e se multiplicaram, gerando inúmeros problemas de saúde e discriminação geográfica.

“O governo não tinha interesse em cuidar da saúde do povo e pelo fato de muitas famílias morarem em um lugar sem saneamento básico, muitos foram afetados, principalmente as crianças que foram contaminadas com verminose”

relata Neide, apontando para um período histórico das periferias, onde a sua atuação junto a outras mulheres da União Popular de Mulheres do Campo Limpo, foi fundamental para cobrar políticas públicas dos governantes.
Dona Neide Abadi com as mulheres da União Popular de Mulheres do Campo Limpo. Foto: Pedro Oliveira/Julho 2023.

Naquela época, dona Neide já realizava um trabalho de educação sanitária com as famílias do Campo Limpo, formando grupos nos bairros para orientar as mães sobre higiene e os riscos de ingerir água contaminada, executando o papel de uma política pública que ainda não existia, os Agentes Comunitários de Saúde, instituída e regulamentada anos depois.

“Nós passávamos de casa em casa, mas era muito difícil. Como essas mães poderiam ferver a água se não tinham dinheiro para comprar o gás? Como iriam colocar cloro na água, se não tinham dinheiro pra comprar? Saúde, de que jeito? Sem higiene, sem banheiro e sem água”

desabafa Dona Neide que atuava como uma agente comunitária de saúde antes mesmo da profissão existir.

A atuação de dona Neide não foi isolada, ela participou ativamente da juventude da Igreja Católica e se envolveu em movimentos que reivindicavam direitos básicos para os territórios periféricos. Com a união de outras lideranças comunitárias, como Aurélio Peres, líder operário e deputado federal, e outros movimentos de moradores e juventude, em 1982, com cerca de 17 ônibus, com mais de 500 moradores, seguiram rumo a Sabesp, em Pinheiros, para exigir o direito a redes de esgoto nos distritos do Campo Limpo, Capão Redondo e M’Boi Mirim, com objetivo de garantir água potável e colocar fim às mortes de crianças por hepatite, verminose e desidratação. 

Mata Atlântica no Capão Redondo

Parque Santo Dias no Capão Redondo. Arquivo prefeitura de São Paulo.

Entre direitos violados, lutas e conquistas, Dona Neide também esteve junto aos movimentos em prol da criação de um espaço verde no território do Capão Redondo, com a desapropriação da fazenda adventista em 1990, para manter preservado uma área de mata atlântica rica em biodiversidade e recursos hídricos.

Dois anos depois, em 1992, essa conquista se materializou com a inauguração do Parque Santo Dias, uma homenagem, segundo ela, merecida a Santo Dias, um operário e líder comunitário, morto pela polícia na porta de uma fábrica no período da ditadura militar, em 1979.

“Ali é nosso pulmão. Essa luta foi uma luta que não teve dono, era uma reivindicação nossa. A conquista do parque também foi em homenagem ao Santo Dias. Quanta gente melhorou de saúde por causa de fazer exercício e estar no ambiente limpo. E lá dentro é bonito, né?”

diz a líder comunitária.
Neide Abadi. Foto: Pedro Oliveira/Julho 2023.

A história de Dona Neide junto aos movimentos de luta por direitos humanos nas periferias da zona sul de São Paulo representa uma inspiração para quem continua lutando por um mundo mais justo e sustentável para todos. “Hoje eu sou brava. Eu tenho indignação de não ver as coisas resolvidas.

 “Eu choro às vezes de ver isso. Muita coisa podia ter nesse Brasil que tem tudo”

Finaliza, Neide Abadi.

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