“Somos seres políticos”: conheça a trajetória política de Keit Lima na Brasilândia

Nordestina, periférica e engajada na participação política no território da Brasilândia, zona norte de São Paulo, Keit Lima é a última entrevistada da série trajetória política, que mostra a história de mulheres periféricas que dedicam parte de sua vida a construir a política institucional.

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Nas eleições municipais de 2020, Keit Lima se candidatou a vereadora com filiação ao PSOL. Ela alcançou a marca de 11.355 votos, para ocupar uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo, mas não conseguiu se eleger. Hoje ela é vereadora suplente pelo partido que acolheu a sua visão política, enraizada na sua origem nordestina e periférica.

Keit mora Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo desde os oito anos. Ela nasceu em Recife e veio com a sua família para São Paulo em busca de acesso à educação, saúde e formas de melhorar de vida.

Hoje ela está cursando o curso superior de direito, sua segunda graduação pela Faculdade Zumbi dos Palmares. Entre os movimentos sociais que ela participa estão a Marcha de Mulheres Negras, Educafro, Mulheres Negras Decide e o grupo Mulheres do Brasil.

Essa trajetória de ativismo político começa dentro do ensino público, quando ela tinha 13 anos e estava cursando a sétima série na escola EMEF João Amos Comenius, localizada no Jardim Vista Alegre, no território da Brasilândia. Lá ela começou a ensinar crianças mais novas que tinham dificuldade no processo de aprendizagem para ler e escrever.

“Eu comecei no ativismo através da educação com 13 anos, porque eu realmente acredito que a educação é a forma mais eficiente para diminuir a desigualdade. A educação é meu principal ativismo, eu comecei como se fosse uma assistente para os professores, eu ajudava os estudantes de 1° a 4° serie que não sabiam ler, então eu dedicava algumas horas do meu dia para ajudar algumas turmas, as professoras destinavam alguns alunos e eu trabalhava aquele período junto com eles, e foi a partir daí que eu comecei”, relembra Keit.

Para chegar à Brasilândia, Keit saiu com sua família de Recife, no estado de Pernambuco, motivada pelo anseio dos seus pais para que ela e a irmã tivessem acesso a uma educação de qualidade e a serviços de saúde para um tratamento médico da sua avó, um dos motivos mais importantes para essa migração de estado.

“Eu vim pra cá com oito anos. Como muitas famílias nordestinas a minha também veio em busca de melhores condições de vida e também em busca de saúde pública, porque a minha avó tinha acabado de ter um AVC né, um derrame, então a gente também veio em busca de saúde pública e melhores condições para o tratamento dela”, conta.

A Brasilândia também foi o ponto de partida para conectar Keit com outros espaços da cidade de São Paulo. “A relação que eu tenho com a cidade parte desse território que está da ponte para cá né, tem que atravessar a cidade para ter acesso à educação e saúde, mas é um território que sou muito grata, onde eu luto por esse território.”

“Quando mainha fica com a filha da vizinha para ela ir à faculdade, isso é político”

Keit Lima

A moradora da Brasilândia usa a expressão “seres políticos” para afirmar que a política está presente em tudo na nossa vida, inclusive no cotidiano do morador das periferias. “Somos seres políticos e a política está aí nesse ser, nessa troca, de quando mainha fica com a filha da minha vizinha para ela poder ir para a faculdade, isso é político, para mim isso é muito político, quando a gente fala da política institucional a gente está falando sobre instrumentalizar as nossas lutas, então como que a gente instrumentaliza a nossa luta, as nossas reivindicações, as nossas pautas, as nossas dores, como a gente faz política pública para diminuir essa desigualdade, essa discrepância que existe através também da política institucional”, argumenta.

Para além da sua visão de políticas públicas e luta por direitos no território da Brasilândia, Keit revela que atua em outras periferias de São Paulo, em parceria com movimentos sociais que apoiam a sua atuação e conta sobre a importância dessa conexão para se manter na ativa. “Eu também atuo em outros territórios periféricos organizada em movimentos sociais, então através desses movimentos a gente se encontra sobre esse lugar das dores né, as dores das favelas, das pessoas, das famílias periféricas, e também se encontra na luta, então é através dessa organização que eu atuo”, explica.

Ela destaca que a atuação dentro da Educafro foi um divisor de águas, para ela ultrapassar as barreiras sociais e geográficas dos territórios periféricos e vivenciar outras formas de fazer política. “Eu comecei a enxergar mais a política institucional no meu dia a dia através dos movimentos que eu construo especialmente a Educafro, eu fui a primeira mulher a ser coordenadora da escola de líderes, e aí eu tive mais presente, a política institucional começou a se tornar constante dentro das minhas articulações, porque até então meu ativismo era totalmente com a base, totalmente dentro das periferias, e a partir desse momento eu atuava dentro das periferias, mas fazendo um intermédio junto a política institucional, levando as demandas da base para a política institucional e o que muda a partir desse momento é ver o tamanho do descaso, de eu ir tentar conversar com parlamentar e ele simplesmente não atender”, revela.

Em meio ao diálogo sobre a importância de construir um diálogo com quem faz política institucional, ou seja, quem é eleito para representar os direitos e interesses do povo, a vereadora suplente pelo PSOL resgata uma lembrança de um fato ocorrido que foi fundamental para despertar nela essa vontade de construir um novo jeito de fazer política, compromissado com os moradores das periferias.

Ela conta que esse momento marcante aconteceu durante uma visita na Câmara dos Deputados Federais, em Brasília. “Teve uma militância específica em Brasília, que me causou muita revolta, onde eu fui com um ônibus cheio, formado em sua maioria por mulheres negras e mais velhas, tinha pessoas do Brasil todo, e aí três pessoas mais velhas passaram mal do lado de fora da Câmara dos Deputados sob o sol, porque três deputados específicos proibiram a nossa entrada, eles proibiram que a gente entrasse para conversar sobre política pública, sobre uma proposta de reivindicação nossa, e aquilo para mim foi inadmissível”, relembra.

Ela descreve o sentimento que sentiu no momento e compartilha como conseguiu se organizar para a viagem em busca de diálogo com parlamentares. “Olhar e entender que se a gente não estiver lá ninguém sequer vai nos escutar sabe, não é interesse deles. Eu, essas mulheres e todas as pessoas que estavam ali tivemos que nos articular para ir trabalhar mais horas nos nossos trabalhos, faltar na faculdade, abrindo mão de estar em casa, para estar ali reivindicando, para estar ali construindo, e sequer fomos atendidos, e a ordem era todo mundo que estava com a camiseta da Educafro não iria entrar”, conta Keit, enfatizando que até hoje quando se lembra desse episódio da sua vida na política fica revoltada.

“Fico com raiva ao lembrar essas mulheres caídas no chão, porque a pressão caiu, porque estavam horas sob o sol. Então não dá mais, não dá mais, esse foi o meu estopim para pensar o que precisamos fazer para isso nunca mais acontecer, para que a gente não precise passar por isso, então nós precisamos estar lá, porque aí seremos nós que estaremos dialogando, somos nós que não vamos permitir isso”, acredita.

Diante dessas recordações que revelam um momento tenso da sua trajetória política, a ativista lembra que a ideia de se candidatar a vereadora em São Paulo é coletiva e não partiu só dela. “A ideia de me candidatar foi construída e decidida coletivamente, ninguém faz nada só e muito menos eu, eu venho de movimentos sociais, eu acredito nesse projeto político construído de várias mãos, então é a partir desse lugar que eu venho”, conta ela, apontando a importância de consolidar um projeto político construído coletivamente pelos movimentos sociais, tanto pelo movimento negro, periférico ou de mulheres.

Ela acrescenta que o importante mesmo é reivindicar e colocar as pautas e as dores da população pobre e periférica com muita seriedade e comprometimento. “Fiquei muito feliz de estar na construção de uma cidade mais justa, mais democrática, onde a periferia não seja tratada com descaso”, enfatiza ela, apontando a sua gratidão por sua candidatura representar a construção de um projeto político coletivo.

Keit faz questão de esclarecer que diferente de outros candidatos que disputam as eleições, a sua ação política não termina na campanha eleitoral. “O que eu reivindico é que todos os corpos tenham os seus direitos garantidos, então que bom que disputamos essa narrativa, que bom que conseguimos alcançar muitas vidas periféricas, que bom que eu trouxe esse debate de ser, de fazer e mostrar que a política é nossa, que a gente que tem que estar lá, então trazer esse debate para as periferias continua e vamos continuar construindo porque a nossa luta não para”, conta.

Ela afirma que não existe outro caminho se não a política institucional para construir um mundo menos desigual e democrático. “A política institucional nada mais é do que a ferramenta para construção de uma sociedade mais justa, uma ferramenta para fazer políticas públicas e diminuir desigualdades”, reforça a vereadora suplente, destacando que esse é o ponto de partida para a construção de um projeto coletivo de cidade, estado e país onde todas as vidas têm a sua humanidade garantida, assim como diz Sueli Carneiro: ‘a nossa humanidade não é negociável, todos tem o seu direito de existir’. 

A pandemia na Brasilândia

 Keit ressalta que enxerga a Brasilândia como um lugar de muita potência, e que neste momento de pandemia seus moradores estão tentando sobreviver, devido ao descaso do poder público em relação aos serviços de saúde.

“Do lado de cá da ponte a gente sempre teve que lidar com o descaso do estado, agora com a pandemia isso está muito mais escancarado”, analisa Keit, afirmando que algumas pesquisas produzidas a partir de dados oficiais revelam que o fato de ser morador da periferia aumenta em 10 vezes mais a chance de morrer de complicações causadas pela covid-19.

“A Brasilândia por muito tempo liderou o bairro com mais mortes mesmo não sendo o com mais casos, o que deixa muito evidente o quanto que a gente não tem acesso a saúde pública de qualidade e óbvio que isso não começou agora, a gente sempre teve que lidar com isso antes da pandemia, se você fosse marcar um clínico geral aqui na Brasilândia demoraria 62 dias né, é mais ou menos a média para ser atendido é o que diz uma pesquisa, enquanto lá em Pinheiros são zero dias, essa desigualdade não começou na pandemia, só que agora está muito escancarado né”, relata a vereadora suplente.

Lima faz questão de deixar claro o significado da Brasilândia para ela que vive e atua na construção de algumas lutas por direitos sociais no território. “Eu comecei a ter a discussão sobre cultura aqui. É o lugar que eu fui para muito baile funk, onde eu curti muito a minha adolescência nos bailes, e é um território onde respira cultura, tem muita potência, mas infelizmente onde existe muito descaso do Estado perante as vidas tanto aqui da Brasilândia, como em todas as periferias da cidade, eu me construí como ativista pisando nesse território, e entendendo e lutando para diminuir essa desigualdade que existe dependendo de que lado da ponte você está”, afirma.

Um dos dilemas que conecta a Brasilândia a um colapso social na pandemia, de acordo com a visão política de Keit é a questão do isolamento social, uma escolha importante para preservar a vida, que não é acessível a todos dos moradores. “O isolamento não chegou aqui, porque as famílias têm que escolher entre morrer de fome ou morrer de covid, nunca teve nenhum amparo do Estado para que as famílias periféricas pudessem fazer isolamento e tivesse comida na mesa, a pandemia chegou e vira e mexe aqui não tem água”, denuncia ela, apontando um cenário de calamidade pública

Segundo a moradora, uma saída para amenizar essa situação tem sido a atuação dos líderes comunitários que estão mobilizando ações comunitárias no território. “Os líderes comunitários se levantam e ajudam, tá chegando sabão nas casas, tá chegando álcool em gel, tá chegando cesta básica, é tudo através dos líderes comunitários, somos nós que estamos fazendo, é através da gente que está sendo feito algo, porque queremos a periferia viva, e a gente não abre mão disso, e é por isso que a gente se levanta para que isso aconteça, nas periferias”, aponta a vereadora suplente, enfatizando que até o momento “o estado chegou” no território.

 “A desigualdade tem cor, gênero e território”

Keit Lima

Lima comenta que não existe e nunca existirá um real Estado de democracia, sem que mulheres pretas, indígenas e periféricas estejam dentro da política institucional, como construtoras de política pública.

“Essas mulheres precisam ser escreventes de políticas públicas, porque a gente sabe que a desigualdade tem cor, gênero e tem território, então são essas pessoas que sentem diariamente na pele o impacto da desigualdade que tem que estar lá escrevendo e fazendo política pública junto com a população, então se política pública não chega à periferia, se política pública não chega às pessoas pretas, não chega aos indígenas é porque não são essas pessoas que estão fazendo”, argumenta.

Ela também comenta sobre a importância desses corpos estarem ocupando esse espaço político para a política ter a cara do povo brasileiro. “A gente não chega a uma real democracia enquanto o parlamento não for a cara do povo, enquanto o povo não estiver lá sendo representado em sua totalidade, sendo representado com seu corpo e com as suas pautas, com a seriedade e comprometimento, é por isso que é muito importante eleger mulheres pretas, indígenas e periféricas.”

Ela revela que umas das suas principais reivindicações que passam pela política institucional se baseia na efetivação de direitos básicos à existência humana. “Eu acho que o desafio é a violência constante que meu corpo carrega né, esse corpo de mulher preta, gorda, periférica e nordestina, mas eu não volto atrás, não dá mais para aceitar esse genocídio em curso contra as vidas periféricas e pobres. A cada 23 minutos tomba um corpo, não dá mais, não aceito, reivindico e essa reivindicação também perpassa pela política institucional,” esclarece.

Em uma linha do tempo, ela acredita que só está aqui pelos acúmulos de aprendizados fruto das vivências em família. “Com 13 anos começo a ser voluntária da escola e começo a fazer trocas com os professores, diretora e vice-diretora, e aí eu começo a entender um pouco mais, eu saio daí com 17 anos, e já entro na minha primeira graduação. Com 22 anos eu já atuo como consultora plena em uma das melhores consultorias multinacional do mundo. Eu olho para aquele espaço e não encontro nenhum dos meus, eu olho para aquele lugar e não vejo gente periférica e preta”, questiona ela.

Ao questionar a estrutura de diversidade profissional na multinacional, Keit diz ter ficado incomodada com aquela situação presente no seu ambiente de trabalho, e com base nessa vivência ela passa a ter mais interesse em fazer algum tipo de mudança na vida dos moradores do território da Brasilândia, por meio de suas ações de voluntariado realizadas sempre aos sábados e domingos na Educafro. A partir desta inquietação surge a sua conexão pela luta antirracista e a favor pelo direito à vida dos moradores das periferias e favelas de São Paulo.

A partir do resgate das suas memórias, Keit encontra forças para continuar neste lugar de construir outra política institucional e ser referência para elaborar políticas públicas de combate às desigualdades. “A política institucional é um espaço muito bem alimentado para que gente preta, pobre e da periferia entenda que aquele espaço não é nosso, então a gente precisa passar por vários processos para entender que aquele espaço é nosso sim, que é a gente tem que estar lá”, finaliza. 

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