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Conselheiros tutelares avaliam impacto do decreto de porte de armas nas periferias

Edição:
Redação

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O Desenrola foi conversar com conselheiros tutelares que foram eleitos por moradores de territórios periféricos localizados nas regiões sul e norte de São Paulo, para entender como um porte de arma contribui ou não para os fazeres cotidianos desse profissional que atua pela garantia de direitos de crianças e adolescentes, envolvidas em diversas situações de vulnerabilidades.

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Jardim Damasceno, um dos bairros do Distrito da Brasilândia, zona norte de SP (Foto: Dicampana FotoColetivo)

A partir do decreto do presidente Jair Bolsonaro, atualizado e publicado na última quarta-feira (8), os profissionais que atuam como Conselheiros Tutelares, uma profissão dedicada a por em prática medidas de proteção a vida de crianças e adolescentes, farão parte um seleto grupo de pessoas que terão direito ao porte de armas facilitado, para uso fora de casa.

Antes de o decreto ser atualizado, o porte de armas só poderia ser concedido a quem comprovasse “efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física”. Agora, o novo texto diz que a comprovação de efetiva necessidade será entendida como cumprida, para algumas categorias de profissionais.

Entre as categorias estão os conselheiros tutelares, advogados, agentes públicos, repórteres que cobrem assuntos policiais, instrutor de tiros, agentes de trânsito, motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas, funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores, morador de áreas rurais, oficial de justiça e pessoas que são detentoras de mandato eletivo nos poderes executivo e legislativo em âmbito federal, estadual e municipal, quando no exercício do mandato, por exemplo, deputados federais e estaduais, entre outros.

O papel do conselheiro tutelar

Através de parcerias com escolas, organizações sociais e serviços públicos, os conselheiros tutelares atuam para garantir os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído em julho de 1990. Na prática, o estatuto funciona como um marco regulatório de aplicação dos direitos humanos a todas as crianças e adolescentes.

Nesse contexto, as periferias e favelas são áreas nas quais os conselheiros tutelares possuem uma intensa articulação com o poder público e moradores, tanto para ser eleito por meio de uma eleição que é organizada a cada quatro anos, como para desempenhar com êxito as funções da sua profissão e mandato que também tem duração de quatro anos. A partir disso, a vida comunitária de um conselheiro começa a ser construída como uma base da sua atuação profissional e política.

De acordo com dados disponíveis no site da Prefeitura de São Paulo, a cidade possui 52 unidades do Conselho Tutelar. A região leste do município concentra o maior número de conselhos, sendo 20 no total. A zona sul vem logo em seguida com 15 unidades. Nos zona oeste são oito pontos de atendimento e o menor número está na zona norte da cidade com sete unidades.

“A minha arma se chama estatuto da criança e do Adolescente”

Em 2011, o agente social Jamerson Ferreira, morador do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, se candidatou ao cargo de conselheiro tutelar do território. Segundo Ferreira, o marco dessa candidatura é que ao invés dele divulgar o seu nome, ele procurou mobilizar os moradores para eles entenderem o papel de um Conselho Tutelar e o impacto desse órgão na vida das crianças e adolescentes do bairro, bem como das famílias.

“Durante esse processo, eu fiquei em primeiro lugar no colégio eleitoral do meu bairro. Isso foi glorioso e uma surpresa pra mim, não no sentido da quantidade de votos, mas pelo meu objetivo de conscientizar naquela região”, relembra ele, citando que morava há apenas três anos no bairro e que essa situação o deixou com a sensação de dever cumprido.

Indagado sobre a existência de situações de violência no seu cotidiano do trabalho que envolva uma ameaça clara a sua integridade física, ele volta no passado com um sorriso no rosto e descreve que certa vez atendeu um adolescente que era usuário de drogas. Durante o atendimento, o conselheiro foi em busca de investigar a estrutura familiar do menor e descobriu por meio da sua avó que o pai e a mãe do garoto haviam falecido. E que esse fato contribuía para ele não se conectar com a família, devido ao surgimento de problemas psíquicos e comportamentais que deram espaço o contato com as drogas.

Sobre esse episódio ele relata: “durante um diálogo com um jovem dentro do conselho tutelar, ele me interpretou de maneira diferente e me ameaçou. Até pulou o muro do conselho. Depois ele voltou e me pediu até desculpa pelo ocorrido. E aquilo foi um lapso, aquela coisa de surtar. E depois eu continuei o atendimento e o encaminhei para um abrigo. E poucos meses atrás eu procurei informações sobre ele e soube que ele continuava no mesmo local e estava bem e isso me deixou muito contente”, conta Ferreira.

Para ele, não houve necessidade do uso de força física para resolver a situação, mas sim sensibilidade para entender o que estava se passando com o jovem. Além desta situação, ele afirma que aconteceu mais um caso, com um adolescente que também possuía problemas mentais e estava desaparecido.

A partir destas experiências Ferreira considera uma “aberração” o decreto que facilita o porte de armas também para os conselheiros tutelares. “Em nenhuma sociedade no mundo a arma contribui para trazer a paz, progresso e melhor afinidade entre as pessoas. O que o governo precisa é fazer uma melhor distribuição de renda para as pessoas e nivelar a formação social dos adolescentes com educação e cultura.”

Em tom crítico e político, o conselheiro tutelar reforça: “a arma tem que estar na mão de quem é segurança e que tem o papel de proteger a sociedade. Eu luto pela garantia de direitos. A minha arma se chama Estatuto da Criança e do Adolescente.”

“Eu não sinto ameaça nenhuma de trabalhar na periferia como conselheira tutelar”

A conselheira tutelar da Brasilândia, Verluzia da Silva, moradora do Jardim Eliza Maria, zona norte de São Paulo, acredita que a maior política de fortalecimento da criança e do adolescente, bem como do trabalho de todo e qualquer Conselho Tutelar seja o investimento em educação.

“O presidente está tirando muitos investimentos da educação e da assistência social, quando a periferia precisa de serviços como os CCA´s e CCJ´s”, fazendo uma referência direta a serviços sociais que zelam pelo cuidado de famílias que estão com seus filhos em situação de vulnerabilidade social.

Do ponto de vista de Silva, o porte de armas não faz parte da cultura do conselheiro tutelar. “Eu não sinto ameaça nenhuma de trabalhar na periferia como conselheira tutelar. A gente não está aqui para intimidar ninguém. Eu vejo a arma como uma intimidação. Para entrar dentro de qualquer comunidade da Brasilândia, local onde eu moro, eu não preciso de uma arma, eu preciso de educação e pedir licença aos moradores e explicar qual é o meu trabalho.”

Com uma vasta vivência na vida comunitária, ela compreende que o conselheiro que optar ter um porte de arma, por se sentir inseguro no dia dia de trabalho significa que ele não constrói um diálogo com a comunidade para explicar qual é a sua função.

Ao relembrar o papel institucional do conselheiro tutelar, previsto no estatuto da criança e do adolescente, ela enfatiza: “nós somos garantidores de direitos e se acontecer qualquer situação de resistência por porte da família nós não vamos usar a força para atender aquela situação, porque nós não somos executores. Executores são os juízes.”

Segundo Silva, até hoje no seu histórico de atuação nenhuma família se recusou a ser atendida ou demonstrou algum tipo de resistência, por compreender a importância do seu trabalho.

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